A virgindade, perdi no banco do carro. Ou no chuveiro. Não me lembro. Sempre fui do tipo que não passa no bafômetro numa hora dessas. E nunca me importei com isso. Preciso de álcool pra aceitar o amor. Mas a Cristal, minha outra personalidade, cansada de acordar ao lado de desconhecidos perfumados de Nega Fulô, Brahma e Old Eight, sugeriu que parássemos de beber por um tempo. Ela me apresentou um profundo e coerente discurso, onde defendia a tese que ninguém liga pra gente no dia seguinte, por causa do nosso exagero etílico pelas madrugadas. Porque bebemos sem filtro. Porque beijamos sem filtro. Porque atropelamos etapas no relacionamento sem filtro. Realmente, ela não mentia. Não que eu me importasse. Não que alguma vez eu tenha chorado de domingo por que não tenho uma companhia pra levar ao cinema, mas esse tipo de coisa é importante pra ela, você entende? Algumas mulheres gostam disso. De ligar pra alguém no fim do expediente e perguntar como foi o seu dia. Como eu vinha tentando há anos, de todas as maneiras, inclusive com simpatias – a que ponto cheguei? – e barracos embriagados tomar pra mim o coração mais livre que já conheci, resolvi aceitar a sobriedade. Quem sabe o reflexo disso tudo não resolveria também a minha questão? Assim, Cristal e eu inauguramos nova fase.
O que de fato ocorreu é que ela tinha se interessado por um rapaz. Praticante de yoga, se não me engano, caseiro e educado, ou seja, nada parecido com os tipos que eu costumava recolher no fim da noite e levar pra casa, cobrindo-me de decepção pelas manhãs, ao olhar para eles esparramados em cima da minha cama. Cristal não estava apaixonada, apenas de saco cheio de não ter alguém para ouvir seus comentários enquanto assistia aos seus seriados prediletos ou pra presentear com um livro que todo mundo deveria ler. Deixei que ela ficasse mais forte. Tomasse conta de mim. Calei a boca. Tive de aturar os vestidinhos comportados e as sapatilhas românticas que ela adora usar pra fazer o estilo sou-pra-ser-levada-a-sério.
Eu suportei o cara por um mês. Sem álcool e sem sexo. Vocês, que não me conhecem, não fazem ideia do trabalho que me dá sair com alguém durante esse tempo todo. Eu costumo sumir depois do segundo encontro, que é quando os defeitos dele, todos juntos, desatam a piscar em amarelo fluorescente. Mas aguentei. Por ela, que sorria até quando o rapaz curtia uma dessas frases bobas e felizes que ela escreve nas redes sociais. Estar com ele até que nos fazia bem. De repente eu não me sentia mais vazia nos dias seguintes, quando telefonemas nunca acontecem. Era bom ouvir alguém perguntar como foi o meu dia e me trazer um bombom de vez em quando, sem parecer uma espécie de pagamento adiantado pra me levar pra cama no fim da noite.
Um mês e nada dele se convidar pra subir pro meu apartamentou ou sugerir alguma coisa mais avançada dentro do carro mesmo. Eu enlouquecida. Ela seduzida. No décimo encontro, não sabemos se cansado de representar ou se por caminhos naturais dos relacionamentos, o rapaz subiu. E nós, eu e ela, preferimos uma taça de vinho pra relaxar. Apenas uma. Quebrávamos nossa regra. Pensei que ela devia estar mesmo gostando dele. Insegura para ser ela mesma. Ou eu mesma.
A noite passou.
O telefonema viria no dia seguinte. Mas o dia seguinte também passou. Calado. E outro. E a semana. E a outra semana. E o mês. Por trinta dias, ingenuamente, ela esperou notícias dele. E foi acumulando uma tristeza parecida com aquelas que me assombraram em épocas mais escuras da minha vida – nas tentativas de encarcerar o rapaz do coração livre. Ela não estava apaixonada, sabe? Era só cansaço da poltrona do cinema ao lado vazia. Era só vontade de abraçar sem tudo ficar estranho depois. Ou de sermos nós mesmas e termos mãos tricotadas a outras por isso. Era só esperança de que o telefone tocasse. De que comprovássemos sua tese, o porquê de silêncios dilacerantes. Aquilo que o espelho e os amigos e o tempo não revelam. O álcool perdia a sua culpa. Cristal ganhava novas dúvidas.
Ela não espera mais o telefonema, posso garantir. Mas ainda passo noites tentando tirá-la de casa. Forçando para que ela sorria para um desconhecido como costumávamos fazer nos bons tempos. Quando ela tinha uma resposta para essas omissões. Mas ela não me ouve. Guardou impressões e mágoas no fundo de uma gaveta. Calou-se. Ela não estava apaixonada, você entende?
É roteirista de TV (atualmente SBT), dramaturga e blogueira.
Escreve no http://priscilanicolielo.blospot.com/
Texto disponível em:
http://www.casalsemvergonha.com.br/2011/12/13/sobre-paixao-bebedeiras-e-telefonemas-no-dia-seguinte/
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