Sinal vermelho. Já é o terceiro menino descalço que vejo hoje, mais uma criança suja, quase invisível e visivelmente carente de tudo. Com um gesto mecânico e curto, poupo esforços, digo em silêncio que não tenho dinheiro, aceito aquela cena inadmissível com a mesma frieza de um animal irracional, bicho egoísta. Sigo o embalo cego de São Paulo e sinto que estou deixando a megalópole cimentar meu coração, hoje com átrios de asfalto e um pulsar robótico, zabumba insensível. A cada dia que passa, ando mais apressado e com menos olhos. O sol se põe todo dia e nunca estou lá para vê-lo partir, a lua vez ou outra está cheia, mas e daí? Minha agenda também está, sempre inundada de compromissos e coisas sem importância, inadiáveis.
O som das buzinas está cada vez mais alto e ensurdecedor. Não reconheço mais a voz etílica do “poetinha” Vinicius. Acordo mudo e não assovio mais os acordes harmônicos de Toquinho e pior: não tenho tempo para me emocionar quando ouço “Olhos nos Olhos”, cantada pelo mestre Chico. Sinto cheiro de fumaça negra, densa, dessas que cospem os caminhões e já nem sei mais qual o perfume usado pelas damas da noite. Sinto gosto de piche, de café amargo, que tomo só pelo poder energético da cafeína. Esqueci o quanto era bom queimar a língua, repetidas vezes, na deliciosa lasanha da minha avó, que também foi esquecida pelo tempo e deixada de lado numa casa infestada de crochê, novela, naftalina e silêncio eterno.
Os prédios estão cada vez mais altos, mas realmente não ligo se esses monstros hoje tapam o esplendor das estrelas, pois esse brilho eu deixei com a paz do passado, eternamente esquecido no céu franco do interior, junto com as frutas sempre maduras que roubei do pé e com as memórias coloridas de quando eu ainda era criança, de joelho ralado e humano.
Hoje sou Fast Food, Flex, High Tech, Full HD e até digital, mas infelizmente não sei a enorme diferença entre uma orquídea e um girassol. Hoje sou SMS de poucos caracteres, e-mail objetivo, parabéns no Facebook, mas nunca saberei o odor sinestésico e inexplicável que tem uma carta escrita a mão. Sou o beijo de tchau que nem ousa encostar o lábio na bochecha do receptor, sou o bom-dia nunca dito para o vizinho de elevador, sou também o esbarrão na rua lotada de outros como eu, seres cuja palavra desculpa sumiu do léxico. Sou um livro egoísta de autoajuda que não lê mais poesia. Sou preconceito de tudo que não sou e não tenho coragem de ser. Perdi a sensibilidade pouco a pouco e quando percebi, deixei de ser.
Não deixe de sofrer toda vez, das muitas vezes que infelizmente ainda verá uma criança com cara de sarjeta e se puder ajude-a, você pode não ter dinheiro, mas sempre terá um estoque infinito de abraços. Se amar alguém, diga logo, não repita isso milhões de vezes, achando que assim manterá essa pessoa ao teu lado, mas diga, pois a vida não avisará a hora de dizer “The End”. Pare de brigar com tua mãe porque ela te liga duzentas vezes por dia, certas coisas não mudarão. Não tenha vergonha de beijar teu pai no rosto, beijar com gosto, se possível na frente do mundo todo, repito: a vida não pede licença quando quer levar alguém. Leia muita poesia, embrenhe-se na selva de palavras quando quiser fugir do caos, absorva toda emoção que puder, seja homem ou seja mulher, mas seja sensível.
Deixe que tomem seu relógio caro e sua mala cheia de dólares, mas se alguém um dia anunciar assalto, encostar uma arma no teu peito e tentar roubar a sensibilidade que lhe resta, reaja com unhas e dentes, pois perdê-la será seu maior risco de morte.
Ricardo Coiro
Disponível em: http://www.casalsemvergonha.com.br/2012/05/16/nao-deixe-que-sua-sensibilidade-seja-roubada/
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