Quando na oitava série, num período confuso que é a adolescência, eu estudava num colégio de freiras e tinha um melhor-amigo chamado Felipe. Mas essa não é a história toda.
Felipe era alto, louro, de olhos azuis e corpo atlético. Levava muitas menininhas para embaixo da escada que dava para a sala audiovisual. Jogava bem futebol, xadrez, videogame, qualquer coisa. Sabe aquelas pessoas que são boas em tudo? E eu era apenas uma versão virgem e distorcida do que mais ou menos sou hoje: sombrio, feio, melancólico, esquisito e me recordo de, na época, querer ser como Rimbaud. Eu ia com meu caderninho de anotações poéticas a todos os lugares da escola, do banheiro ao ginásio de educação física. Não demorou muito para todas as turmas da tarde e algumas da manhã espalharem a conclusão de eu era, como dizem, bicha.
Difícil saber por que Felipe e eu, mesmo tão diferentes, éramos amigos do peito. Um belo e um feio, um pop e um esquisitão. Suponho a razão seja porque ambos estávamos repetindo a série e o resto da turma parecia todos uns pirralhos idiotas; mas é difícil entender as afinidades entre duas pessoas, onde exatamente elas se engancham.
Um dia, sem mais nem menos, Felipe chegou pra mim e disse que era melhor nos afastarmos, de turma, de classe, de turno. A minha imagem estava pegando nele, e isso era uma coisa ruim. Todos estavam achando que ele não gostava de meninas, e que ele só pegava várias para calar a boca da galera. Até tentei contrapôr, que não importava o que os outros pensassem, mas não fui muito longe. Eu sabia por quem eu tinha ereções e isso me bastava. Era mais fácil arrumar uns amigos novos do que mudar a cabeça homofóbica de alguém.
Eu poderia dizer que sei como é ser gay, mas seria uma heresia hedionda. Eu não sei como eles se sentem, não tenho ideia. O descobrimento, a negação, a transformação, a aceitação, a admissão? Nem imagino. Sei como é achar um homem atraente e bonito (Todos os homens sabem como é, embora não confessem. David Beckham, hein?), mas não faço ideia de como é ter atração física pelo mesmo sexo. Nunca tive contato com a dor e aflição de um menino que não se sente assim tão viril quanto o pai, a escola, a turma da natação, os garotos da rua, tios, etc, esperam que ele seja. Eu não sei como é, você não sabe como é. Só eles sabem. Não deve ser fácil.
Mas mesmo assim a gente cochicha, aponta, ri, debate, milita, rejeita, fala, debocha, argumenta, conta piadas a respeito, opina sobre o casamento gay, a lei anti-homofobia, adia o beijo homossexual na novela. Por que todos os dias conversamos sobre coisas que não temos noção de como é? Porque precisamos da ilusão de que somos superiores, seja por “saber como é” e falsamente compreender, ou seja por negação, rejeição, preconceito.
A verdade é que sofremos um pavor irracional em relação a tudo que não nos diz respeito, não aceitamos que as coisas possam existir e funcionar sem nosso aval e entendimento, o que nos leva a outra ilusão necessária: a de que estamos no controle, de que o mundo pertence a nós e logo somos o centro dele, e tudo que sucede em volta é mera paisagem e figuração.
Existem as coisas que você sabe. Que não representam uma ínfima fração de todo o resto que você não sabe. Deus nos abandonou com as dúvidas e fugiu com todas as verdades absolutas.
Gabito Nunes.
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