Os primeiros dias de transitoriedade foram tranquilos e eu nem dei muita bola. Guardava em mim uma arenosa convicção de que ela não conseguiria ir muito longe, sentiria na boca do estômago a falta que sou capaz de fazer e voltaria de pesarosa e com o peito reaberto, se dando conta de que eu não teria capacidade nem de pensar numa sacanagem daquelas. Nada, até agora. Pelo jeito, Baby Julie acha mesmo que faz meu tipo fazer essas incursões transvaginais na maior caradura, debaixo do nariz dela, quase que literalmente. E embora nem eu mesmo saiba direito do que sou capaz ou que tipo de gente eu sou, tenho certeza que não sou tão canalha quanto ela pensa. Ela deve estar agora com um punhado de amigas, num bar, se enchendo de álcool doce e dizendo que sou o desastre ambiental que matou todos os peixes do oceano. Que se dane.
Mas há pouco achei aquele velho shortinho de brim que ficou orfão na minha gaveta de cuecas para sair. E aí tudo veio à superfície respirar desesperadamente e reanimar as memórias que estavam quase sem oxigênio. Eu amava esse short de brim curto e com uma cascata de farrapinhos se derramando por suas coxas franzinas, e a jaqueta de couro preto por cima de tudo. Atiro a peça no chão e me sinto melhor, com a pouco duradoura impressão de que ela está aqui comigo, fazendo bagunça no banheiro ou escutando baladinhas de surfista no meu computador. É nesse momento que eu crio coragem.
Eu ligo. Ela não atende.
Eu ligo. Ela não atende.
Eu ligo. Ela não atende.
Eu ligo. Ela não atende.
Eu ligo. Ela não atende.
Eu ligo. Está fora de área.
Eu ligo. Está desligado.
Eu ligo. Está fora de área ou desligado.
Eu ligo. Deixo uma mensagem de voz.
Eu ligo. Ela atende.
Eu quase choro de gratidão do meu lado da linha. Ela gentilmente sugere que eu morra. Em seguida bate a ligação na minha cara. O aparelho se multiplica em destroços ao esbarrar na parede fria. Eu pranteio feito um palerma, lágrimas idiotas me escorrem sem autorização, eu choro pelo aparelho, pela parede, pela fome na África, pelos buracos na calçada, pela propaganda partidária na TV, pela minha mãe, por causa de uma garota, porque tem dias que eu me sinto mais sozinho que o usual, por tudo.
Ela me liga. Recomenda que eu pare de ligar, e o engraçado que eu já havia feito isso momentos atrás. São três horas sem agir como um garoto maluco, desses que guardam ex-namoradas em freezeres. Tento reverter e consigo que ela me ouça um pouco. Digo a verdade, que não lamento pelo motivo que nos separou, mas pelo rompimento em si. E então acho que Juliete fica curiosa com minha veemência em encontrá-la e explicar tudo, pois grunhe um “Ok”. Ótimo, ótimo. Convido Julie para vir até aqui, mas a garota acha melhor não, e aí sugere um local público como oferta final. Topo, topo qualquer coisa.
*
Chego ao pub e ela já está lá, com os ombros encolhidos e olhando fixamente para o rótulo da garrafa de vodka inerte em cima de mesa. Sento no outro extremo e logo um garçom se materializa na minha frente, o que considero a deixa pra pedir uma coca gélida e uma dose de Domecq, para que esse papo deslize com facilidade. Assim que o sujeito sai, junto as mãos e as esfrego um pouco, e aí olho pra ela preparando meu discurso pré-fabricado.– Espera – Juliete larga na frente. – Olha, antes de você dizer qualquer coisa, deixa eu falar.
Meio que cortou minha onda, mas tudo bem.
– Ok. Pode falar.
Ela fala:
– Sabe, eu acho que a gente deveria acabar com tudo isso, logo de uma vez – desembucha a garota.
– Mas... Como... Por quê? – pergunto.
Vê como é a vida, esses dias eu falava em dispensar Juliete como se eu fosse o novo garanhão a estrelar o próximo 007 e agora estou gaguejando como uma pessoa paranoica, carente, culpada e louca.
– Eu conheci outra pessoa. – Curta e grossa.
É mentira dela. Ninguém conhece ninguém em quinze dias. Tudo bem, pessoas trocam nomes, signos e telefones com outras pessoas em quinze dias, mas o que eu quero dizer é que ninguém me esquece nesse meio tempo. Eu acho. Ela inventou esse camarada para me despistar. Porém, sou tão boboca que começo a acreditar nela, do fundo do meu coração.
– Que porcaria.
– Ah qual é, Santiago? Você realmente achava que isto estava dando certo?
Ignoro a pergunta. Não interessa. O que interessa é:
– Quem é?
– Não importa – ela se retrai na cadeira.
Ah importa, e como importa. O mínimo que todos os que já foram enganados deveriam ganhar como ressarcimento é uma descrição precisa e detalhada sobre por quem foram trocados. Dá uma referência para o quão próximo do penhasco você está sendo empurrado. E, sabe, muitas vezes tive notícias de pessoas que se sentiram ofendidas ao serem passadas pra trás por alguém, em tese, pior. Eu não, ficaria muito aliviado em saber que Juliete está vendo, sei lá, um entregador de pizzas. Nada contra, eu mesmo adoro pizzas e aciono a tele-entrega o tempo todo, a não ser que, claramente, os entregadores de pizza não estão entre os dez estereótipos mais disputados do mundo. Eu odiaria mesmo é saber que ela anda se esfregando num tipão alto, protuberante, com um emprego-dos-sonhos e um cabelo louro e macio, que veste terno escuro em tempo integral. Porque eu sei que jamais vou me erguer a este patamar como indivíduo. Já sobre os entregadores de pizza, bem, há grandes chances de um dia eu me juntar à corporação deles, se eu perder meu pavor de motocicletas. É por isso que eu quero saber quem é o palhaço. Saber que fui trocado por alguém pior me fará sentir infinitamente melhor, sério mesmo. Até posso usar como desculpa que minha ex-namorada está desmiolada ou não soube compreender o homem gentil, austero e nada mesquinho que eu sou, não é verdade?
– Sabe, Santi... – ela retoma depois de uma breve crise polissilábica e irritadiça da minha parte: – As coisas não andam nada bem entre nós.
– Só se for pra você – murmuro como uma criança. – Eu estava achando tudo perfeito.
– É mesmo?
– No duro.
– Bem, eu acho que você não está enxergando direito – diz Juliete, antes de deixar um hiato reflexivo no ar. – Engraçado, porque a primeira vez que olhei no seu rosto, vi uma pessoa boa. Nunca me engano com essas coisas. Mas você passou todo esse tempo que estivemos juntos tentando provar que estou errada.
– Bem, eu...
– Me deixa concluir – Juliete me interrompe. – Talvez você seja um cara legal, ainda não sei. Só que dá pra ver que você anda meio perdido, sem saber o que você quer, sabe, de mim, da sua vida, de você mesmo.
– Quem disse que eu não sei o que eu quero? – minha vez de sustar o diálogo. – Mas é claro que eu sei o que eu quero!
– E o que é? Me diga.
Paro por um instante. No entanto, logo desisto e vejo como sou incapaz de pensar em algo que eu queira muito, com devoção. Então escolho o caminho mais fácil, e vou de “sei lá”.
– Viu só?
– Eu quero você, Juliete.
– Ah, é? E por que todos esses dias sem me ligar? Por que você me deixou terminar o namoro numa boa quando vi aquela cena horrível no sofá daquela festa cretina? Por que eu tenho tantos por-quês na minha cabeça? Por que eu me deixei seduzir pela primeira pessoa que pareceu estar bem aí pra mim?
– Numsei – balbucio.
– Bom, se você não sabe então tanto faz. Eu acho que você estava sem medo de me perder. E se você não tem medo de perder é porque não tem importância.
– Só sei que estou sentindo o medo agora.
– É tarde para isso, Santiago. Acorda, cara. O sonho acabou.
Me recuso a aceitar uma decisão unilateral dessas. Mas não há jeito, ao que parece. Ela pega a conta e se põe de pé, claramente de saída. Ela acha que a conversa chegou ao fim. Isso é o que ela pensa. Não vou deixá-la sair assim.
– Baby Julie, eu acho que amo você.
Sério, Santiago? Você disse mesmo isso para todo o lugar ouvir? Sim, eu disse, e é a primeira vez que digo que amo alguém e faço questão de que a coisa soe totalmente falsa e desesperada. Foi mais constrangedor do que perder a virgindade. Que jogo mais sujo. Juliete fica imóvel, plantada no meio do bar, com uma mão na cintura e rindo ironicamente e sem humor.
– Você é inacreditável – fala e aí sai porta afora.
Vou atrás. Ela dá passos largos na calçada, olhando avante, vetando meus chamados.
– Espere aí, Juliete. Esse papo ainda não terminou!
– Terminou para mim! – ela berra, enquanto caminha muito mais rápido, quase trotando.
– Por que as coisas tem de ser sempre como você quer, hein?
Estou gritando no meio da rua. Patético.
– Juliete! Juliete! Volta aqui!
Ela sobe no seu Renault e dá a partida. Paralelamente, na calçada, eu começo a perfurar os passantes, atropelando latas de lixo, orelhões e placas anunciando refeições, correndo, correndo, correndo e bravejando atrás da garota, como um cão raivoso se achando o dono da rua. Eu a persigo o mais veloz que sou capaz, gritando e acenando atrás do automóvel, como um maníaco do parque. Ela atravessa um semáforo no vermelho, quebra uma esquina e eu a parco de vista.
Dou um tempo ali, aos bufos e pigarros, arfando intensamente com as mãos nos joelhos, sentindo gosto de sangue a cada trocar de ar nos pulmões, realmente mal e sem fôlego, como um maratonista derrotado que em algum momento errou o trajeto. Que droga. Se eu quiser recuperar o amor de Juliete, com urgência terei de parar com o cigarro.
Gabito Nunes em “Juliete Nunca Mais”: http://www.julietenuncamais.com.br/2013/05/048.html#ixzz2TbwqNLXa
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