“Sem que eu soubesse, as coisas não ditas haviam crescido como
cogumelos venenosos nas paredes do silêncio, enquanto ele ficava
acordado na cama, fitando o teto, com o branco dos olhos reluzindo na
penumbra. Se eu interrogava, o que você tem amor? Ele respondia que não
era nada, estava pensando no trabalho. A gente sabia que era mentira,
ele sabia que eu sabia, mas nenhum de nós rompeu aquele acordo sem
palavras. Nunca imaginei o mal que o roía.”
Lya Luft em O Silêncio dos Amantes
Eu nunca entendi porque meu pai não dizia que me amava.
Sabia lá dentro do afeto que ele me tinha, mas cresci sem o famoso ‘eu te amo’. Fui ouvi-lo de outros. Amigos e amores – alguns sinceros, outros nem tanto. Mas o ‘eu te amo’ do meu pai, aquele não vinha. Ele fez falta na infância, na adolescência, quando saí e voltei de casa. Quando meu filho nasceu. Acho que só fui ouvir as 3 palavras mágicas depois do segundo divórcio. Nem lembro quando nem como. Foi algo meio fugidio, falado às pressas e com a aspereza de quem não tem intimidade com a coisa. Mas aí já não era a coisa mais esperada do mundo. Afinal, como disse, havia aprendido a ouvi-lo torto, de outras formas e de outras fontes. Acho que nunca saberei a extensão do dano de não ter ouvido, dele, aquelas palavras quando precisei. Também nunca entendi essa demora toda nem porque ele, como a maioria dos homens, tinha tanta dificuldade em falar sobre o que sentia. Até que um dia, sem querer, encontrei uma resposta.
A resposta veio através de um livro, encontrado por acaso na biblioteca em que meu filho, então já no terceiro ano do fundamental, estudava: ‘Memórias de uma (outra) guerra’, de Marlene de Fáveri.
O levei para casa, li e reli, impressionada com as cenas violentas, com a dor, a humilhação e vergonha que via relatadas no livro. Fui ter com meu pai, assuntar se aquilo existiu mesmo, se ele sabia ou tinha vivido o fato. No começo ele ficou meio ressabiado em falar, mas aos poucos foi abrindo o que lembrava. Remexendo as memórias, os sentimentos, a dor presa na garganta. E aí fui entender o quanto julgamos errado o que não conhecemos. O quanto tomamos como pessoal o que nada nos diz. Ele não deixara de falar o ‘eu te amo’ porque não me amava ou pouco se importava com o que eu precisava ouvir. Era porque algumas palavras simplesmente não podiam sair. Falar podia doer mais do que calar.
Meu pai calou-se aos 7 anos. Simplesmente por ser alemão. Para quem não sabe – e era disto que tratava o livro – sob o pretexto de defender o país dos possíveis nazistas, o governo de Getúlio Vargas, de 1942 a 1945, perseguiu, prendeu e confinou mais de 3 mil alemães, italianos e japoneses em campos de concentração espalhados por todo o País. Nas cidades mais vigiadas de Santa Catarina, foi decretada uma verdadeira caça aos alemães. Quem falasse alemão e, sobre qualquer motivo (mesmo uma rivalidade pessoal), fosse suspeito de “invasor infiltrado”, “espião” ou “agente de Hitler”, era torturado em praça pública, tinha sua casa invadida, seus bens levados. A tortura muitas vezes significava fazer o suspeito beber óleo de motor queimado em praça pública enquanto a barra das suas calças era amarrada aos seus calcanhares. Aquilo produzia imediato efeito laxante e a pessoa era obrigada a seguir caminho defecando diante do povo que ria, apontando para o ‘porco nazista’. O pânico entre os alemães se instaurou, o rádio tinha que ser ouvido baixinho, temia-se até pelo vizinho. Ninguém saía de casa à noite e todos que falavam alemão ou mesmo português com sotaque, silenciaram. Ser alemão era perigoso.
Meu pai, então apenas um menino que só falava alemão e nada sabia de guerra, espiões ou campos de concentração nazistas ou brasileiros, do dia para a noite foi terminantemente proibido de abrir a boca. Mudo, não entendia o idioma que, de repente, todos falavam, o que era escrito no quadro da escola ou porque seus pais não conversavam mais com ele e os outros o humilhavam. Perdeu o primeiro ano do ensino fundamental e o desejo de continuar estudando. Aprendeu que ter língua comprida encurtava a vida. Que língua materna era uma madrasta castradora. Que língua solta prende e língua presa permite viver. E cresceu assim, mudo por um ano inteiro. amordaçado por vários.
Hoje ele consegue se abrir e falar sobre o que eu carecia ouvir enquanto crescia. Assim como cresce o afeto entre nós. Mas fico pensando no tanto de pessoas que não consegue se expressar e no sofrimento que eles carregam e criam com a própria dor. Rezo que consigam romper com seus silêncios algum dia e que este dia não seja tarde demais. E que quem precisa do ‘eu te amo’ possa entender, como eu, que talvez não seja pessoal. Talvez só existam palavras não ditas, caladas pela história de cada um.
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