27 outubro, 2012

Não quero lembrar...




"Não quero lembrar. Faz mal lembrar das coisas que se foram e não voltam. Agora já passou. Não sinto raiva, não sinto nada. Sinto saudade, de vez em quando. Quando penso que podia ter sido diferente."
— Caio Fernando Abreu

26 outubro, 2012

Mentirinhas ofensivas


É importante evitar as situações mentirentas. A pequena mentira é a que estraga a nossa vida. 

— Quando você diz que não recebeu e-mail e manda resposta com o e-mail que você não recebeu embaixo do seu. 
— Quando você diz que já fez o trabalho e nem começou.
— Quando você diz que vai retornar a ligação em cinco minutos e esquece o assunto por meses.
— Quando você diz que o outro não está incomodando.
— Quando você quebra algo e diz que achou assim.
— Quando você não confessa seu amor porque gosta de guardar o eu te amo para momentos especiais.
— Quando você diz que está chegando em casa e acabou de entrar no carro.
— Quando você diz que vai a um evento sabendo que não vai.
— Quando você diz que não ouviu a pergunta que não desejava responder.
— Quando você culpa o engarrafamento ou o alarme do celular pelo atraso no serviço.
— Quando você diz que esqueceu, mas na verdade não pretendia fazer.
— Quando você coloca a culpa de um adiamento por falsa doença familiar.
— Quando você diz que não está namorando, que são apenas bons amigos. 



Fabrício Carpinejar

21 outubro, 2012

Remar, re-amar, amar.



"'Olha, eu sei que o barco tá furado e sei que você também sabe, mas queria te dizer pra não parar de remar, porque te ver remando me dá vontade de não querer parar também.Tá me entendendo? Eu sei que sim. Eu entro nesse barco, é só me pedir. Nem precisa de jeito certo, só dizer e eu vou. Faz tempo que quero ingressar nessa viagem, mas pra isso preciso saber se você vai também. Porque sozinha, não vou. Não tem como remar sozinha, eu ficaria girando em torno de mim mesma. Mas olha, eu só entro nesse barco se você prometer remar também! Eu abandono tudo, história, passado, cicatrizes. Mudo o visual, deixo o cabelo crescer, começo a comer direito, vou todo dia pra academia. Mas você tem que prometer que vai remar também, com vontade! Eu começo a ler sobre política, futebol, ficção científica, o que for. Aprendo a pescar, se precisar. Mas você tem que remar também. Eu desisto fácil, você sabe. E talvez essa viagem não dure mais do que alguns minutos, mas eu entro nesse barco, é só me pedir. Perco o medo de dirigir só pra atravessar o mundo pra te ver todo dia. Mas você tem que me prometer que vai remar junto comigo. Mesmo se esse barco estiver furado eu vou, basta me pedir. Mas a gente tem que afundar junto e descobrir que é possível nadar junto. Eu te ensino a nadar, juro! Mas você tem que me prometer que vai tentar, que vai se esforçar, que vai remar enquanto for preciso, enquanto tiver forças!Você tem que me prometer que essa viagem não vai ser a toa, que vale a pena. Que por você vale a pena. Que por nós vale a pena.

Remar.
Re-amar.
Amar."


Caio Fernando Abreu

17 outubro, 2012

As verdades que nem sempre a gente diz.



Eu não sou quem você pensa. Sou orgulhosa, exibida, não sei dizer não, detesto passar roupa, não lavo a louça no dia em que faço as unhas, tenho preguiça de gente lenta, penso sem parar, engato um assunto no outro, vivo com as pernas roxas, pois sou estabanada. Detesto pimentão, abacate, arroz doce e tomate seco. 

Gosto de abraçar apertado, beijar estalado, olhar no fundo do olho até desvendar a pessoa por inteiro. Já me enganei muito com as pessoas, já menti, já falei o que não devia, já meti os pés pelas mãos, já fui imatura e sem noção. Já saí na rua de cabelo sujo, unha descascada e perna cabeluda. Já tentei ser uma super mulher e desisti dez segundos depois. Já tentei seduzir e fazer jogo, mas não combina comigo, meus olhos sempre me entregam e eu começo a rir quando faço tipo. Nunca usei ninguém e detesto ser usada. Nunca traí nem fui desleal, palavra pra mim é coisa séria. 

Meu lado criança acha que um dia vai mudar o mundo. Meu lado adulto também. Não jogo lixo na rua, mas não desligo a torneira enquanto esfrego um prato na pia. Prefiro cachorros, mas acho bonito o jeito que os gatos se movem. Adoro animais em geral, menos insetos e animais que são pegajosos. E não vou muito com a cara do passarinho que começa a cantar às três da manhã.

Já plantei árvore, já escrevi livros e quero ter um filho. Antigamente, queria dois ou três. Hoje acho que só quero um. Já gostei de pessoas e elas já gostaram de mim. Já iludi pessoas para deixar o meu ego de bem com a vida. Sim, eu sei que isso é horrível, mas eu tinha vinte anos e naquela época me achava a rainha da cocada preta. Já fui iludida por pessoas que queriam deixar seus egos de bem com a vida. É, o mundo gira e a gente sempre leva o troco.

Adoro chorar em filmes. E já fiquei me olhando no espelho enquanto chorava. Treinei tanto que hoje posso afirmar que choro bonito. Já passei trote, já apertei na campainha e saí correndo, já enchi de desaforo pessoas que não mereciam. 

Detesto perder quando estou jogando cartas ou qualquer outro jogo. E se perco mais de uma vez seguida sinto vontade de parar de jogar. É, eu não sei perder, confesso. Não gosto quando alguém não gosta de mim. Não gosto quando falam mal de mim. Não gosto quando sou criticada. Mas aprendi a lidar com isso, hoje procuro estar com minha consciência tranquila. E entendo perfeitamente que é impossível agradar a todos. 

É claro que é bom ser amada. Quem não gosta de um confete e serpentina? Mas prefiro sinceridade. Prefiro que você diga que não gosta de mim do que vir aqui, sorrir um sorriso quase sincero, virar as costas e falar mal. 

Nasci pra ser livre, mas preciso saber pra onde voltar. Gosto do meu aconchego, meu porto-seguro, minha paz. E encontro tudo isso na minha família. Descobri que o amor só vem quando a gente começa a curtir a própria companhia, afinal, para se entregar para alguém é preciso saber exatamente quem você é (e ainda assim ser feliz).

Clarissa Corrêa.

16 outubro, 2012

Carta Para Além dos Muros.



Primeira carta para além dos muros.
Alguma coisa aconteceu comigo. Alguma coisa tão estranha que ainda não aprendi o jeito de falar claramente sobre ela. Quando souber finalmente o que foi, essa coisa estranha, saberei também esse jeito. Então serei claro, prometo. Para você, para mim mesmo. Como sempre tentei ser. Mas por enquanto, e por favor, tente entender o que tento dizer.
É com terrível esforço que te escrevo. E isso agora não é mais apenas uma maneira literária de dizer que escrever significa mexer com funduras - como Clarice, feito Pessoa. Em Carson McCullers doía fisicamente, no corpo feito de carne e veias e músculos. Pois é no corpo que escrever me dói agora. Nestas duas mãos que você não vê sobre o teclado, com suas veias inchadas, feridas, cheias de fios e tubos plásticos ligados a agulhas enfiadas nas veias para dentro das quais escorrem líquidos que, dizem, vão me salvar.
Dói muito, mas eu não vou parar. A minha não-desistência é o que de melhor posso oferecer a você e a mim neste momento. Pois isso, saiba, isso que poderá me matar, eu sei, é a única coisa que poderá me salvar. Um dia entenderemos talvez.
Por enquanto, ainda estou um pouco dentro daquela coisa estranha que em aconteceu. É tão impreciso chamá-la assim, a Coisa Estranha. Mas o que teria sido? Uma turvação, uma vertigem. Uma voragem, gosto dessa palavra que gira como um labirinto vivo, arrastando pensamentos e ações nos seus círculos cada vez mais velozes, concêntricos, elípticos. Foi algo assim que aconteceu na minha mente, sem que eu tivesse controle algum sobre o final magnético dos círculos içando o início de outros para que tudo recomeçasse. Todos foram discretos, depois, e eu também não fiz muitas perguntas, igualmente discreto. Devo ter gritado, e falado coisas aparentemente sem sentido, e jogado coisas para todos os lados, talvez batido em pessoas.
Disso que me aconteceu, lembro só de fragmentos tão descontínuos que. Que - não há nada depois desse que dos fragmentos - descontínuos. Mas havia a maca de metal com ganchos que se fechavam feito garras em torno do corpo da pessoa, e meus dois pulsos amarrados com força nesses ganchos metálicos. Eu tinha os pés nus na madrugada fria, eu gritava por meias, pelo amor de Deus, por tudo o que é mais sagrado, eu queria um par de meias para cobrir meus pés. Embora amarrado como um bicho na maca de metal, eu queria proteger meus pés. Houve depois a máquina redonda feita uma nave espacial onde enfiaram meu cérebro para ver tudo que se passava dentro dele. E viram, mas não me disseram nada.
Agora vejo construções brancas e frias além das grades deste lugar onde me encontro. Não sei o que virá depois deste agora que é um momento após a Coisa Estranha, a turvação que desabou sobre mim. Sei que você não compreende o que digo, mas compreenda que eu também não compreendo. Minha única preocupação é conseguir escrever estas palavras - e elas doem, uma por uma - para depois passá-las, disfarçando, para o bolso de um desses que costumam vir no meio da tarde. E que são doces, com suas maçãs, suas revistas. Acho que serão capazes de levar esta carta até depois dos muros que vejo a separar as grades de onde estou daquelas construções brancas, frias.
Tenho medo é desses outros que querem abrir minhas veias. Talvez não sejam maus, talvez eu apenas não tenha compreendido ainda a maneira como eles são, a maneira como tudo é ou tornou-se, inclusive eu mesmo, depois da imensa Turvação. A única coisa que posso fazer é escrever - essa é a certeza que te envio, se conseguir passar esta carta para além dos muros. Escuta bem, vou repetir no teu ouvido, muitas vezes: a única coisa que posso fazer é escrever, a única coisa que posso fazer é escrever.

Segunda Carta Para Além dos Muros
No caminho do inferno encontrei tantos anjos. Bandos, revoadas, falanges. Gordos querubins barrocos com as bundinhas de fora; serafins agudos de rosto pálido e asas de cetim; arcanjos severos, a espada em riste para enfrentar o mal. Que no caminho do inferno, encontrei, naturalmente, também demônios. E a hierarquia inteira dos servidores celestes armada contra eles. Armas do bem, armas da luz: no pasarán!
Nem tão celestiais assim, esses anjos. Os da manhã usam uniforme branco, máscaras, toucas, luvas contra infecções, e há também os que carregam vassouras, baldes com desinfetantes. Recolhem as asas e esfregam o chão, trocam lençóis, servem café, enquanto outros medem pressão, temperatura, auscultam peito e ventre. Já os anjos debochados do meio da tarde vestem jeans, couro negro, descoloriram os cabelos, trazem doces, jornais, meias limpas, fitas de Renato Russo celebrando a vitória de Stonewall, notícias da noite (onde todos os anjos são pardos), recados de outros anjos que não puderam vir por rebordosa, preguiça ou desnecessidade amorosa de evidenciar amor.
E quando sozinho, depois, tentando ver os púrpuras do crepúsculo além dos ciprestes do cemitério atrás dos muros - mas o ângulo não favorece, e contemplo então a fúria dos viadutos e de qualquer maneira, feio ou belo, tudo se equivale em vida e movimento - abro as janelas para os anjos eletrônicos da noite. Chegam através de antenas. Fones, pilhas, fios. Parecem-se às vezes com Cláudia Abreu (as duas, minha brava irmã e a atriz de Gilberto Braga), mas podem ter a voz caidaça de Billie Holiday perdida numa FM ou os vincos cada vez mais fundos ao lado da boca amarga de José Mayer. Homens, mulheres, você sabe, anjos nunca tiveram sexo. E alguns trabalham na TV, cantam no rádio. Noite alta, meio farto de asas ruflando, liras, rendas e clarins, despenco no sono plástico dos tubos enfiados em meu peito. E ainda assim eles insistem, chegados desse Outro Lado de Todas as Coisas.
Reconheço um por um. Contra o fundo blue de Derek Jarman, ao som de uma canção de Freddy Mercury, coreografados por Nuriev, identifico os passos bailarinos-nô de Paulo Yutaka. Com Galizia, Alex Vallauri espia rindo atrás da Rainha do Frango Assado e ah como quero abraçar Vicente Pereira, e outro Santo Daime com Strazzer e mais uma viagem ao Rio com Nelson Pujol Yamamoto. Wagner Serra pedala bicicleta ao lado de Curill Collard, enquanto Wilson Barros esbraveja contra Peter Greenaway, apoiado por Nélson Perlongher. Ao som de Lóri Finokiaro, Hervé Guibert continua sua interminável carta para o amigo que não lhe salvou a vida. Reinaldo Arenas passou a mão devagar em seus cabelos claros. Tantos, meu Deus, os que se foram. Acordo com a voz safada de Cazuza repetindo em minha orelha fria: "Quem tem um sonho não dança, meu amor".
Eu desperto, e digo sim. E tudo recomeça.
Às vezes penso que todos eles parecem vindos das margens do rio Narmada, por onde andaram o menino cego cantor, a mulher mais feia da Índia e o monge endinheirado de Gita Mehta. Ás vezes penso que todos são cachorros com crachás nos dentes, patas dianteiras furadas por brasas de cigarro para dançar melhor, feito o conto* que Lygia Fagundes Telles mandou. E penso junto, sem relação aparente com o que vou dizendo: sempre que vejo ou leio Lygia, fico estarrecido de beleza.
Pois repito, aquilo que eu supunha fosse o caminho do inferno está juncado de anjos. Aquilo que suja treva parecia guarda seu fio de luz. Nesse fio estreito, esticado feito corda bamba, nos equilibramos todos. Sombrinha erguida bem alto, pé ante pé, bailarinos destemidos do fim deste milênio pairando sobre o abismo.
Lá embaixo, uma rede de asas ampara nossa queda.

Última Carta Para Além dos Muros
Porto Alegre - Imagino que você tenha achado as duas cartas anteriores obscuras, enigmáticas como aquelas dos almanaques de antigamente. Gosto sempre do mistério, mas gosto mais da verdade. E por achar que esta lhe é superior te escrevo agora assim, mais claramente. Nem sinto culpa, vergonha, ou medo.
Voltei da Europa em junho me sentindo doente. Febres, suores, perda de peso, manchas na pele. Procurei um médico e, à revelia dele, fiz O Teste. Aquele. Depois de uma semana de espera agoniada, o resultado: HIV Positivo. O médico viajara para Jokorama, Japão. O teste na mão, fiquei três dias bem natural, comunicado à família, aos amigos. Na terceira noite, amigos em casa, me sentindo seguro - enlouqueci. Não sei detalhes. Por auto-proteção, talvez, não lembro. Fui levado para o pronto Socorro do Hospital Emílio Ribas com suspeita de um tumor no cérebro. No dia seguinte, acordei de um sono drogado num leito da enfermaria de infectologia, com minha irmã entrando no quarto. Depois, foram 27 dias habitados por sustos e anjos - médicos, enfermeiras, amigos, família, sem falar nos próprios - e uma corrente tão forte de amor e energia que amor e energia brotaram dentro de mim até tornaram-se uma coisa só. O de dentro e o de fora unidos em pura fé.
A vida me dava pena, e eu não sabia que o corpo ("meu irmão burro", dizia São Francisco de Assis) podia ser tão frágil e sentir tanta dor. Certas manhãs chorei, olhando através da janela os muros brancos do cemitério no outro lado da rua. Mas à noite, quando os néons acendiam, de certo ângulo a Dr. Arnaldo parecia o Boulevard Voltaire, em Paris, onde vive um anjo sufista que vela por mim. Tudo parecia em ordem, então. Sem rancor nem revolta, só aquela imensa pena de Coisa Vida dentro e fora das janelas, bela e fugaz feito as borboletas que duram só um dia depois do casulo. Pois há um casulo rompendo-se lento, casca seca abandonada. Após, o vôo do Ícaro perseguindo Apolo. E a queda?
Aceito todo dia. Conto para você, porque não sei ser senão pessoal, impudico, e sendo assim preciso te dizer: mudei, embora continue o mesmo. Sei que você compreende.
Sei também que, para os outros esse vírus de science fiction só dá me gente maldita. Para esse, lembra Cazuza: "Vamos pedir piedade, Senhor, piedade para essa gente careta e covarde". Mas para você, revelo humilde: o que importa é a Senhora Dona Vida, coberta de ouro e prata e sangue e musgo do tempo e creme Chantilly às vezes e confetes de algum carnaval, descobrindo pouco apouco seu rosto horrendo e deslumbrante. Precisamos suportar. E beijá-la na boca. De alguma forma absurda, nunca estive tão bem. Armado com as armas de Jorge. Os muros continuam brancos, mas agora são de um sobrado colonial espanhol que me faz pensar em García Lorca; o portão pode ser aberto a qualquer hora para entrar ou sair; há uma palmeira, rosas cor-de-rosa no jardim. Chama-se Menino deus este lugar cantado por Caetano, e eu sempre soube que era aqui o porto. Nunca se sabe até que ponto seguro, mas - para lembrar Ana C., que me deteve à beira da janela - como como não se pode ancorar um navio no espaço, ancora-se neste porto. Alegre ou não: ave Lya Luft, ave Iberê, Quintana e Luciano Alabarse, chê.
Vejo Dercy Gonçalvez, na Hebe, assisto A Falecida de Gabriel Villela no Teatro São Pedro; Maria Padilha conta histórias inéditas de Vicente Pereira; divido sushis com a bivariana Yolanda Cardoso; rezo por Cuba; ouço Bola de Nieve; gargalho com Déa Martins; desenho a quatro mãos com Laurinha; leio Zuenir Ventura para entender o Rio; uso a estrela do PT no peito (Who Knows?) ; abro o I Ching ao acaso : Shêng, a Ascensão ; não perco Éramos Seis e agradeço, agradeço, agradeço.
A vida grita. E a luta, continua.
Caio Fernando Abreu.

15 outubro, 2012

Carta a um amigo.


Meu querido amigo: Havia tantos anos que não nos víamos! E, de repente, num estacionamento, os nossos caminhos se cruzaram. Dizem que isso se chama “coincidência” – quando encontros acontecem acidentalmente, sem ter sido preparados. De fato, foi um acidente. Não havíamos marcado hora, não havíamos marcado lugar. E, na infinita possibilidade de lugares, na infinita possibilidade de tempos, nossos tempos e nossos lugares coincidiram. E deu-se o encontro.
Dizem alguns, entre eles Jung, se não me engano, que “coincidências” não existem. Coincidências, eles dizem, só são coincidências quando vistas na face direita do tapete. Mas, se pudéssemos olhar o avesso, encontraríamos os fios do destino que fizeram aquele encontro inevitável. Os homens vêem o direito; os deuses tecem o avesso.
À coincidência segue-se sempre a surpresa: não estávamos esperando! E foi assim mesmo. Tive uma surpresa alegre ao vê-lo. Muito embora, nessa idade, os reencontros repentinos, depois de muitos anos, causem um pouquinho de susto. Quando, depois de vários anos, encontramos “aquilo” que conhecêramos como uma menina, a reação automatica é dizer: “Mas como você cresceu! Você está uma moça!” Na “nossa” idade o impulso é dizer: “Mas como você..............!” Deixei o espaço em branco de propósito, para que você o completasse. Sim, eu e você envelhecemos.
Mas o que me comoveu e convenceu de que aquela coincidência fora planejada pelos deuses foi a sua primeira frase: “Rubão, estou apavorado. A hora está chegando!” Sem explicações. Eram desnecessárias. Você sabia que eu sabia o que você estava dizendo. A morte está próxima. Chegará um dia em que teremos de nos despedir desse mundo. Isso é verdade para todos. Nunca se sabe em que esquina a morte nos aguarda. Mas, quando jovens, espantamos o pavor dizendo que ainda vai demorar muito. Na velhice esse consolo já não é possível. ( Ah! Pobres dos saberes acadêmicos que eu e você aprendemos e ensinamos! Como eles nos deixam desamparados diante do Grande Mistério!)
Tive uma grande vontade de abraçá-lo, mas fiquei com vergonha. Senti “compaixão”. “Compaixão” quer dizer “sentir com”. Eu senti o que você sentia. Já estive no seu lugar. Desde a minha infância fui aterrorizado pela morte. Tinha medo de dormir, pois temia que ela, valendo-se da minha distração, me ferisse. Mas durante o dia, em meio aos brinquedos, com meus amigos, eu me esquecia dela. Mas ela voltava com o crepúsculo. Também aos domingos, quando eu ia à igreja e lá o pastor  ensinava que aqueles que não estão bem com Deus ( o Deus dele, é claro...), seriam mandados para o inferno, por toda a eternidade. Pelo medo os clérigos católicos e protestantes conseguiam a submissão dos fracos.
Depois, por razões que desconheço, o meu terror pela morte desapareceu. O “lado de lá” já não me assusta. Pois só há duas possibilidades. Primeira: o “lado de lá” não existe. Se não existe, serei devolvido ao lugar onde estive desde o big-bang, treze bilhões de anos atrás. E não tenho a menor memória ruim desses treze bilhões de anos. Pode até ser que as mãos dos deuses que tecem o avesso me façam nascer de novo. Se isso acontecer será ótimo porque gosto muito de viver. Segunda: o “lado de lá” existe. Se existe, estou tranqüilo. Como entendem os poetas, Deus é amor, e sendo amor não posso imaginar que nada de mau esteja à minha espera.
Muito do terror da morte resulta das coisas que nos ensinaram nas igrejas, coisas que nossas mães nos ensinaram. São sempre elas, as mães, as portadoras da religiosidade, não sei bem porque. Talvez porque, tendo Deus ao seu lado, elas consigam que seus filhos as obedeçam. Como se sabe, Deus castiga as crianças que desobedecem as suas mães.  Por amor às nossas mães, continuamos a acreditar...
Mas as coisas que as religiões ensinam são invenções dos homens. Um Deus de amor iria estragar o seu universo com uma câmara de tortura chamada inferno? Pelo que sei Deus é jardineiro e se ocupa com a beleza. Como disse Bachelard, os tipos que inventaram o inferno tinham muitas vinganças a realizar. Mas o amor não se vinga. Pelo menos foi isso que aprendi de Jesus.
E o fato é que ninguém acredita. Se as pessoas religiosas acreditassem que o céu é tão bom assim elas não iriam tanto ao médico e não se esforçariam tanto para continuar vivendo. Tratariam era de morrer logo para apressar sua viagem para a colônia de férias permanente. O que elas desejam, mesmo, é continuar nesse mundo tão bonito, tão bom.
O que tenho não é medo. É uma tristeza. É-me insuportável a idéia de ser expulso de campo...
Assim, não tenho palavras de consolo. “Com que tristeza avisto o horizonte aproximado e sem recurso. Que pena a vida ser só isto!” Era o sentimento da Cecília Meireles. Os poetas dizem a verdade. E por falar em poetas, leia o poema do Alberto Caeiro que começa assim: “Num meio dia de fim de primavera...”  É lindo. Trás paz à minha alma. Trará paz à sua também. E gosto de rezar essa linda oração. E nem é preciso acreditar em Deus. Basta se alimentar das palavras. Como diz o evangelho, “a palavra é Deus”.

Rubem Alves

Crianças...



"Ser criança é acreditar que tudo é possível. É ser inesquecivelmente feliz com muito pouco. É se tornar gigante diante de gigantescos pequenos obstáculos. Ser criança é fazer amigos antes mesmo de saber o nome deles. É conseguir perdoar muito mais fácil do que brigar. Ser criança é ter o dia mais feliz da vida, todos os dias. SER CRIANÇA É O QUE A GENTE NUNCA DEVERIA DEIXAR DE SER."

"Vamos permitir que a pureza da nossa infância, toque e permaneça para sempre em nossos corações!"

14 outubro, 2012

Pensar é transgredir.


Não lembro em que momento percebi que viver deveria ser uma permanente reinvenção de nós mesmos, para não morrermos soterrados na poesia da banalidade, embora pareça que ainda estamos vivos. Mas compreendi, num lampejo: então é isso, então é assim. Apesar dos medos, convém não ser demais fútil nem demais acomodada. Algumas vezes é preciso pegar o touro pelos chifres, mergulhar para depois ver o que acontece: porque a vida não tem de ser sorvida como uma taça que se esvazia, mas como o jarro que se renova a cada gole bebido. 
Para reinventar-se é preciso pensar: isso aprendi muito cedo. Apalpar, no nevoeiro de quem somos, algo que pareça uma essência : isso, mais ou menos, sou eu. Isso é o que eu queria ser, acredito ser, quero me tornar ou já fui. Muita inquietação por baixo das águas do cotidiano. Mais cômodo seria ficar com o travesseiro sobre a cabeça e adotar o lema reconfortante : "Parar pra pensar, nem pensar !" 
O problema é que quando menos se espera ele chega, o sorrateiro pensamento que nos faz parar. Pode ser no meio do shopping, no trânsito, na frente da tevê ou do computador. Simplesmente escovando os dentes. Ou na hora da droga, do sexo sem afeto, do desafeto, do rancor, da lamúria, da hesitação e da resignação. 
Sem ter programado, a gente para pra pensar. Pode ser um susto: como espiar de um berçário confortável para um corredor com mil possibilidades. Cada porta, uma escolha. Muitas vão se abrir para um nada ou para algum absurdo. Outras, para um jardim de promessas. Alguma, para a noite além da cerca. Hora de tirar os disfarces, aposentar as máscaras e reavaliar : reavaliar-se . 
Pensar pede audácia, pois refletir é transgredir a ordem do superficial que nos pressiona tanto. Somos demasiado frívolos: buscamos o atordoamento das mil distrações, corremos de um lado a outro achando que somos grandes cumpridores de tarefas. Quando o primeiro dever seria de vez em quando parar e analisar: quem a gente é, o que fazemos com a nossa vida, o tempo, os amores. E com as obrigações também, é claro, pois não temos sempre cinco anos de idade, quando a prioridade absoluta é dormir abraçado no urso de pelúcia e prosseguir no sono, o sonho que afinal nessa idade ainda é a vida. 
Mas pensar não é apenas a ameaça de enfrentar a alma no espelho: é sair para as varandas de si mesmo e olhar em torno, e quem sabe finalmente respirar. Compreender: somos inquilinos de algo bem maior do que o nosso pequeno segredo individual. É o poderoso ciclo da existência. Nele todos os desastres e toda a beleza têm significado como fases de um processo. Se nos escondemos num canto escuro abafando nossos questionamentos, não escutaremos o rumor do vento nas árvores do mundo. Nem compreenderemos que o prato das inevitáveis perdas pode pesar menos do que o dos possíveis ganhos. Os ganhos ou os danos dependem da perspectiva e possibilidades de quem vai tecendo a sua história. O mundo em si não tem sentido sem o nosso olhar que lhe atribui identidade, sem o nosso pensamento que lhe confere alguma ordem. 
Viver, como talvez morrer, é recriar-se : a vida não está aí apenas para ser suportada nem vivida, mas elaborada. Eventualmente reprogramada. Conscientemente executada. Muitas vezes, ousada. 
Parece fácil: "escrever a respeito das coisas é fácil", já me disseram. Eu sei. Mas não é preciso realizar nada espetacular, nem desejar nada excepcional. Não é preciso nem mesmo ser brilhante, importante, admirado. Para viver de verdade, pensando e repensando a existência, para que ela valha a pena, é preciso ser amado; e amar; e amar-se. Ter esperança; qualquer esperança. Questionar o que nos é imposto, sem rebeldias insensatas mas sem demasiada sensatez. Saborear o bom, mas aqui e ali enfrentar o ruim. Suportar sem se submeter, aceitar sem se humilhar, entregar-se sem renunciar a si mesmo e à possível dignidade. 
Sonhar, porque se desistimos disso apaga-se a última claridade e nada mais valerá a pena. Escapar, na liberdade do pensamento, desse espírito de manada que trabalha obstinadamente para nos enquadrar, seja lá no que for. E que o mínimo que a gente faça seja, a cada momento, o melhor que afinal se conseguiu fazer. 


Lya Luft 

11 outubro, 2012

A Coragem para ser Feliz


"Continuamos a perder muitas coisas na vida só por causa da falta de coragem. Na verdade, nenhum esforço é necessário para conquistar - só é preciso coragem - e as coisas começarão a vir até você, em vez de você ir atrás delas. 
Pelo menos no mundo interior é assim. 
E, para mim, ser feliz é a maior coragem. 


Ser infeliz é uma atitude muito covarde.
Na realidade, para ser infeliz, não é preciso nada.
Qualquer covarde pode ser, qualquer tolo pode ser.
Todo mundo é capaz de ser infeliz; para ser feliz é preciso coragem - é um risco tremendo.

Não temos o costume de pensar assim.
Nós pensamos: "O que é preciso para ser feliz? Todo mundo quer ser feliz."
Isso está absolutamente errado.

É muito raro uma pessoa estar pronta para ser feliz - as pessoas investem tanto na infelicidade! Elas adoram ser infelizes.
Na verdade, elas são felizes por serem infelizes.

Há muitas coisas para se entender - sem entendê-las é muito
difícil se livrar da mania de ser infeliz.

A primeira coisa é: ninguém está prendendo você; é você que decidiu ficar na prisão da infelicidade.

Ninguém prende ninguém.

O homem que está pronto para sair dela, pode sair quando quiser.
Ninguém mais é responsável.

Se uma pessoa é infeliz, é ela mesma a responsável.
Mas a pessoa infeliz nunca aceita a responsabilidade - é por isso que continua infeliz.
Ela diz: " Estão me fazendo infeliz" .

Se outra pessoa está fazendo com que você seja infeliz, naturalmente não há nada que você possa fazer.
Se você mesmo está causando a sua infelicidade, alguma coisa pode ser feita... Alguma coisa pode ser feita imediatamente.

Então ser ou não ser infeliz está nas suas mãos.

Todavia as pessoas ficam jogando nos outros a responsabilidade - às vezes na mulher, às vezes no marido, às vezes na família, no condicionamento, na infância, na mãe, no pai... outras vezes na sociedade, na história, no destino, em Deus - mas não param de jogar nos outros.
Os nomes são diferentes, mas o truque é sempre o mesmo.

Um homem torna-se realmente um homem quando aceita a responsabilidade total - é responsável pelo quer que seja.
Essa é a primeira forma de coragem, a maior delas.

É muito difícil aceitá-la porque a mente vai continuar dizendo:
"Se você é responsável, porque criou isso?".
Para evitar isso, dizemos que os outros são responsáveis:
"O que eu posso fazer? Não tem jeito... sou uma vítima! Sou jogado daqui para ali por forças maiores que eu e não posso fazer nada. Posso no máximo chorar porque sou infeliz e ficar ainda mais infeliz chorando".

E tudo cresce - se você cultiva uma coisa, ela cresce.
Então você vai cada vez mais fundo... mergulha cada vez mais fundo.

Ninguém, nenhuma outra força, está fazendo nada a você.
É você e só você.

Isso resume toda a filosofia do karma - que é o seu fazer; karma significa ‘fazer'.
Você fez e pode desfazer.
E não é preciso esperar, postergar.
Não é preciso tempo - você pode simplesmente pular fora disso.

Mas nós nos habituamos.
Se pararmos de ser infelizes, nos sentiremos muito sozinhos,
perderemos nossa maior companhia.
A infelicidade virou nossa sombra - nos segue por toda a parte.

Quando não há ninguém por perto, pelo menos a infelicidade está ali presente - você se casa com ela....
E trata-se de um casamento muito, muito longo;
você está casado com a sua infelicidade há muitas vidas.

Agora chegou a hora de se divorciar dela.
Isto é o que eu chamo de a grande coragem
- divorciar-se da infelicidade,
perder o hábito mais antigo da mente humana,
a companhia mais fiel."

Osho

01 outubro, 2012

Ele, só ele




Ele me mudou tanto. Não consigo entender exatamente onde as mudanças começaram. Mas foram muitas. E acho que foi devagar. Se fosse rápido eu teria sentido. E talvez tivesse pisado forte no freio. Ninguém gosta de mudança, já que toda mudança implica uma perda. Quando a gente muda acaba saindo da zona de conforto. E a zona de conforto é, como o próprio nome diz, confortável, segura, boa.

Ele me deixou mais forte. A gente nunca percebe a força que tem até acontecer algo. E quando esse algo acontece, plim, surge aquela força absurda. E a gente se surpreende com as reações, pensamentos, sensações.

Ele me levou algumas pessoas. Poxa, eu lamento dizer isso, mas ninguém é eterno. E sabe aquele seu amigo muito amigo? Ele vai te deixar chateado. E sabe aquela pessoa incrível que você contava? Ela vai te decepcionar. E sabe aquela colega que almoçava todas as quartas junto com você? Ela vai passar a almoçar com outra pessoa depois que uma de vocês mudar de emprego. A vida é assim: traz algumas pessoas e afasta outras.

Ele me mostrou o que é um sentimento. É que nem sempre a gente sabe. Às vezes é necessário um empurrãozinho. Um beliscão. Uma queda ou um peteleco na orelha. A coisa está ali, ao seu lado, e nem sempre os seus olhos estão bem abertos para enxergar.

Ele me ensinou que os dias nem sempre são ensolarados. E que a chuva tem a sua beleza. O cinza também. E que nada é eterno. E que ninguém ganha sempre. E que esse é o grande barato de tudo. Essa inconstância, essa incerteza, essa interrogação.

Ele me fez ver que a beleza vai além de um salto alto, uma sombra preta, uma chapinha e unhas bem feitas. E que dinheiro não compra caráter. E que educação não está em nenhuma prateleira do supermercado.

Ele me fez acreditar que tudo passa. Que nenhuma dor é para sempre. Que nenhuma alegria dura 365 dias. Que a gente vive numa gangorra. E que o ditado “um dia é da caça, o outro do caçador” é a coisa mais verdadeira que existe.

Ele me deixou enciumada. É que todo mundo sabe quem ele é. Todo mundo já sentiu os efeitos que ele traz. Todo mundo já provou o seu sabor. E já se jogou em seus braços.

Ele, o tempo.

Clarissa Corrêa