31 julho, 2010

Natureza viva


Como você sabe, dirás feito um cego tateando, e dizer assim, supondo um conhecimento, faria quem sabe o coração do outro adoçar um pouco até prosseguires, mas sem planejar, embora planejes há tanto tempo, farás coisas como acender o abajur do canto depois apagar a luz mais forte, criando um clima assim mais íntimo, mais acolhedor, que não haja tensão alguma no ar, mesmo que previamente saibas do inevitável das palmas molhadas de tuas mãos, do excesso de cigarros e qualquer coisa como um leve tremor que, esperas, não transparecerá em tua voz. Mas dirás assim, por exemplo, como você sabe, sim como você sabe, a gente, as pessoas, infelizmente têm, temos, essa coisa, emoções, mas te deténs, infelizmente? o outro talvez perguntaria por que infelizmente? então dirás rápido, para não desviar-te demasiado do que estabeleceste, qualquer coisa como seria tão bom se pudéssemos nos relacionar sem que nenhum dos dois esperasse absolutamente nada, mas infelizmente, insistirás, infelizmente nós, a gente, as pessoas, têm, temos - emoções. Meditarias: as pessoas falam coisas, e por trás do que falam há o que sentem, e por trás do que sentem há o que são e nem sempre se mostra. Há os níveis-não-formulados, camadas imperceptíveis, fantasias que nem sempre controlamos, expectativas que quase nunca se cumprem, e sobretudo emoções. Que nem se mostra. Por tudo isso, infelizmente, repetirás, insistirás, completamente desesperado, e teu único apoio seria a mão estendida que, passo a passo, raciocinas com penosa lucidez, através de cada palavra estarás quem sabe afastando para sempre. Mas já não sou capaz de me calar, talvez dirás então, descontrolado, e um pouco mais dramático, porque meu silêncio já não é uma omissão, mas uma mentira. O outro te olhará com seus olhos vazios, não entendendo que teu ritmo acompanharia o desenrolar de uma paisagem interna, absolutamente não-verbalizável, desenhada traço a traço em cada minuto dos vários dias e tantas noites de todos aqueles meses anteriores, recuando até a data, maldita ou bendita, ainda não ousaste definir, em que pela primeira vez o círculo magnético da existência de um, por acaso banal ou pura magia, interceptou o círculo do outro.No silêncio que se faria, pensas, precisarás fazer alguma coisa, como colocar um disco ou ensaiar um gesto, mas talvez não faças nada, porque ele continuará te olhando com seus olhos vazios, no fundo dos quais procuras, mergulhador submarino, o indício mínimo de um tesouro escondido para que possas voltar à tona com um sorriso nos lábios e as mãos repletas de pedras preciosas. Mas nesse silêncio que certamente se fará, talvez acendas mais um cigarro, e com a seca boca cerrada, sem nenhum sorriso, evitarias o mergulho para não correres o risco de encontrar uma fera adormecida. Teu coração baterá fortemente, sem que ninguém escute, e por um momento talvez imaginas que poderias soltar os membros e simplesmente tocá-lo, como se assim conseguisses produzir uma espécie qualquer de encantamento que de repente iluminaria esta sala com aquela luz que tentas, em vão, descobrir também nele, enquanto dentro de ti ela se faz quase tangível de tão clara.Nítida luz que ele não vê, esse outro sentado a teu lado na sala levemente escurecida, onde os sons externos mal penetram, como se estivessem os dois presos dentro de uma bolha de ar, de tempo, de espaço, e novamente encherás o cálice com um pouco mais de vinho para que o líquido descendo por tua garganta trêmula vá de encontro a essa claridade que tentas, precário, transformar em palavras luminosas para ofender a ele. Que nada, diz, e nada dirás, e sem saber por quê pensas um extenso corredor escuro onde tateias, feito cego, as mãos estendidas para o vazio, pressentindo o nada, que tu mesmo prepararias agora, suicida meticuloso, através de silêncios mal tecidos e palavras inábeis, pobre coisa sedenta, te feres, exigindo o poço alheio para matar tua sede indivisível.Anjos e demônios esvoaçariam coloridos pela sala, mas o caçador de borboletas permanece parado, olhando para a frente, um cigarro aceso na mão direita, um cálice cheio de vinho na mão esquerda. A presença do outro latejaria a teu lado, quase sangrando, como se o tivesses apunhalado com tua emoção não dita. Tuas mãos apoiadas em bengalas mentirosas não conseguiriam desvencilhar o gesto para romper essa espessa e invisível camada que te separa dele. Por um momento desejarás então acender a luz, dar uma gargalhada ridícula, acabar de vez com tudo isso, fácil fingir que tudo estaria bem, que nunca houve emoções, que não desejas tocá-lo nem conhecê-lo, que o aceitas assim latejando amigo velo remoto, completamente independente de tua vontade, te todos esses teus informulados sentimentos. No momento seguinte, tão imediato que nascerá, gêmeo tardio, quase ao mesmo tempo que o anterior, desejerás depositar o cálice, apagar o cigarro e estender duas mãos limpas em direção a esse rosto que sequer te olha, absorvido na contemplação de sua própria paisagem interna.Mas indiferente à distância dele, quase violento, de repente queres violar com tua boca ardida de álcool e fumo essa outra boca a teu lado. Desejarás desvendar palmo a palmo esse corpo que tá tento tempo supões, até que as palma famintas de tuas mãos tenham percorrido todos os caminhos, até que tua língua tenha rompido todas as barreiras do medo e do nojo, tua boca voraz tenha bebido todos os líquidos, tuas narinas sugado todos os cheiros e, alquímico, os tenha transmutado num só, o teu e o dele, juntos - luz apagada, peças brancas de roupa cintilando, jogadas ao chão. Desejá-lo assim, a esse outro tão íntimo que às vezes julgas desnecessário dizer alguma coisa, porque enganado supões que tu e ele, vezenquando, sejam um só, te encherá o corpo de uma força nova, como se uma poderosa energia brotasse de algum centro longínquo, há muito adormecido, quem sabe dessa luz oculta, é então que sentes claramente que ele não é tu e que tu não serás ele, essa coisa, o outro, que mágico ou demoníaco, deliberado ou casual, te inflama assim, alucinando tua alma. Queres pedir a ele que, simplesmente sendo, te mantenha nesse atormentado estado brilhante para que possas iluminá-lo também com teu toque, com tua língua terna, com a vara de condão de teu desejo. Mas ele nada sabe, nem saberá se permaneceres assim, temeroso de que uma palavra ou gesto desastrados seriam capazes de rasgar em pedaços essa trama onde te enleias cada vez mais sem remédio, emaranhado em ti, em tua viva emoção, emaranhado no desconhecido de dentro dele, o outro - que no lado oposto do sofá cruza as mãos sobre os joelhos, quase inocente, esperando atento, educado, que de alguma forma termines o que começaste. Muito mais que com amor ou qualquer outra forma tortuosa de paixão, será surpreso que o olharás agora, porque ele nada sabe de tu próprio poder sobre ti, e neste exato momento poderias escolher entre torná-lo ciente de que dependes dele para que te ilumines ou escureças assim, intensamente, ou quem sabe orgulhoso negar-lhe o conhecimento desse estranho poder, para que não te estraçalhe impiedoso entre as unhas agora calmamente postas em sossego, cruzadas nas pontas dos dedos sobre os joelhos. Ah: fumarás demais, beberás em excesso, aborrecerás todos os amigos com tuas histórias desesperadas, noites e noites a fio permanecerás insone, a fantasia desenfreada e o sexo em brasa, dormirás dias adentro, faltarás ao trabalho, escreverás cartas que não serão nunca enviadas, consultarás búzios, números, cartas e astros, pensarás em fugas e suicídios em cada minuto de cada novo dia, chorarás desamparado atravessando madrugadas em tua cama vazia, não conseguirás sorrir nem caminhar alheio pelas ruas sem descobrires em algum jeito alheio o jeito exato dele, em algum cheiro o cheiro preciso dele.Que não suspeitará de tua perdição, mergulhado como agora, a teu lado, na contemplação dessa paisagem interna onde não sabes sequer que lugar ocupas, e nem mesmo estás. Na frente do espelho, nessas manhãs maldormidas, acompanharás com a ponta dos dedos o nascimento de novos fios brancos nas tuas têmporas, o percurso áspero e cada vez mais fundo dos negros vales lavrados sob teus olhos profundamente desencantados. Sabes de tudo sobre esse possível amargo futuro. Sabes também que já não poderias voltar atrás, que estás inteiramente subjugado e as tuas palavras, sejam quais forem, não serão jamais sábias o suficiente para determinar que essa porta a ser aberta agora, logo após teres dito tudo, te conduza ao céu ou ao inferno. Mas sabes principalmente, com uma certa misericórdia doce por ti, por todos, que tudo passará um dia, quem sabe tão de repente quanto veio, ou lentamente, não importa.Só não saberás nunca que neste exato momento tens a beleza insuportável da coisa inteiramente viva. Como um trapezista que só repara na ausência da rede após o salto lançado, acendes o abajur do canto da sala depois de apagar a luz mais forte. E começas a falar.


Caio Fernando Abreu

30 julho, 2010

A arte de ser feliz

Houve um tempo em que minha janela se abria
sobre uma cidade que parecia ser feita de giz.
Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco.
Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto.
Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde, e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas.
Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse.
E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor.
Outras vezes encontro nuvens espessas.
Avisto crianças que vão para a escola.
Pardais que pulam pelo muro.
Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais.
Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar.
Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega.
Ás vezes, um galo canta. Às vezes, um avião passa.
Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino.
E eu me sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.

Cecília Meireles

Navegue...




Navegue, descubra tesouros, mas não os tire do fundo do mar, o lugar deles é lá.
Admire a lua, sonhe com ela, mas não queira trazê-la para a terra.
Curta o sol, deixe-se acariciar por ele, Mas lembre-se que seu calor é para todos.
Sonhe com as estrelas, apenas sonhe, elas só podem brilhar no céu.
Não tente deter o vento, ele precisa correr por toda à parte, ele tem pressa de chegar sabe-se lá onde.
Não apare a chuva, ela quer cair e molhar muitos rostos, não pode molhar só o seu.
As lágrimas? Não as seque, elas precisam correr na minha, na sua, em todas as faces.
O sorriso! Esse você deve segurar, não o deixe ir embora, agarre-o!

Quem você ama? Guarde dentro de um porta-jóias, tranque, perca a chave!
Quem você ama é a maior jóia que você possui, a mais valiosa.
Não importa se a estação do ano muda, se o século vira,Conserve a vontade de viver, não se chega à parte alguma sem ela.
Abra todas as janelas e as portas também.
Persiga um sonho, mas não o deixe viver sozinho.
Alimente sua alma com amor, cure suas feridas com carinho.
Descubra-se todos os dias, deixe-se levar pelas vontades, mas não enlouqueça por elas.
Procure sempre o fim de uma história, seja ela qual for.
Dê um sorriso para quem esqueceu como se faz isso.
Olhe para o lado, alguém precisa de você.
Abasteça seu coração de fé, não a perca nunca.
Mergulhe de cabeça nos seus desejos e satisfaça-os.
Agonize de dor por um amigo, só saia dessa agonia se conseguir tirá-lo também.
Procure os seus caminhos, mas não magoe ninguém nessa procura.

Não se acostume com o que não o faz feliz, revolte-se quando achar necessário.
Alague seu coração de esperanças, mas não deixe que ele se afogue nelas.
Se achar que precisa voltar, volte!
Se perceber que precisa seguir, siga!
Se estiver tudo errado, comece novamente.
Se estiver tudo certo continue.
Se sentir saudades, mate-as.
Se perder um amor, não se perca!
Se achá-lo, segure-o!

Fernando Pessoa

29 julho, 2010

Infinito Particular



"Eis o melhor e o pior de mim
O meu termômetro, o meu quilate
Vem, cara, me retrate
Não é impossível
Eu não sou difícil de ler
Faça sua parte
Eu sou daqui, eu não sou de Marte
Vem, cara, me repara
Não vê, tá na cara, sou porta bandeira de mim
Só não se perca ao entrar
No meu infinito particular
Em alguns instantes
Sou pequenina e também gigante
Vem, cara, se declara
O mundo é portátil
Pra quem não tem nada a esconder
Olha minha cara
É só mistério, não tem segredo
Vem cá, não tenha medo
A água é potável
Daqui você pode beber
Só não se perca ao entrar
No meu infinito particular"

Infinito Particular
Composição: Arnaldo Antunes, Marisa Monte, Carlinhos Brown



28 julho, 2010

Eu, modo de usar:


Pode invadir ou chegar com delicadeza,
mas não tão devagar que me faça dormir.
Não grite comigo, tenho o péssimo hábito de revidar.
Acordo pela manhã com ótimo humor mas ...
permita que eu escove os dentes primeiro.
Toque muito em mim, principalmente nos cabelos
e minta sobre minha nocauteante beleza.

Tenho vida própria, me faça sentir saudades,
conte algumas coisas que me façam rir, mas não conte piadas
e nem seja preconceituoso, não perca tempo, cultivando
este tipo de herança de seus pais.
Viaje antes de me conhecer,
sofra antes de mim para reconhecer-me um porto,
um albergue da juventude.
Eu saio em conta, você não gastará muito comigo.
Acredite nas verdades que digo e também nas mentiras,
elas serão raras e sempre por uma boa causa.
Respeite meu choro, me deixe sózinha, só volte quando eu chamar e,
não me obedeça sempre que eu também gosto de ser contrariada.
( Então fique comigo quando eu chorar, combinado?).

Seja mais forte que eu e menos altruísta!
Não se vista tão bem... gosto de camisa para fora da calça,
gosto de braços, gosto de pernas e muito de pescoço.
Reverenciarei tudo em você que estiver a meu gosto:
boca, cabelos, os pelos do peito e um joelho esfolado,
você tem que se esfolar as vezes, mesmo na sua idade.

Leia, escolha seus próprios livros, releia-os.
Odeie a vida doméstica e os agitos noturnos.
Seja um pouco caseiro e um pouco da vida,
não de boate que isto é coisa de gente triste.
Não seja escravo da televisão, nem xiita contra.
Nem escravo meu, nem filho meu, nem meu pai.
Escolha um papel para você que ainda não
tenha sido preenchido e o invente muitas vezes.

Me enlouqueça uma vez por mês mas, me faça uma louca boa,
uma louca que ache graça em tudo que rime com louca:
loba, boba, rouca, boca ...
Goste de música e de sexo. goste de um esporte não muito banal.
Não invente de querer muitos filhos, me carregar pra a missa,
apresentar sua familia... isso a gente vê depois ... se calhar ...
Deixa eu dirigir o seu carro, que você adora.

Quero ver você nervoso, inquieto, olhe para outras mulheres,
tenha amigos e digam muitas bobagens juntos.
Não me conte seus segredos ... me faça massagem nas costas.
Não fume, beba, chore, eleja algumas contravenções.
Me rapte!

Se nada disso funcionar ... experimente me amar !!!

Martha Medeiros

27 julho, 2010

Tortura e Glória


Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos. Veio a ter um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de algum livrinho, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima com paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como data natalícia e saudade.
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía «As Reinações de Narizinho».
Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria. Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave. No dia seguinte fui até à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livroi a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes eram a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.
Bom, mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono da livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do dia seguinte ia se repetir com o coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer está precisando que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você não veio, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se formando sob os meus olhos espantados.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Esta devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o facto de não entender. Até que essa boa mãe entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler! E o pior para ela não era essa descoberta. Devia ser a descoberta da filha que tinha. Com certo horror ela nos espiava: a potência de perversidade de sua filha desconhecida, e a menina em pé à sua porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, se refazendo, firme e calma para a filha: você vai emprestar agora mesmo «As reinações de Narizinho». E para mim disse tudo o que eu jamais poderia aspirar a ouvir: «E você fica com o livro por quanto tempo quiser.» Entendem? Valia mais do que me dar o livro: pelo tempo que eu quisesse é tudo o que uma pessoa, pequena ou grande, pode querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro com as duas mãos, co primindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração estarrecido, pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei mais comendo pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por uns instantes. Criava as mais falsas dificuldades pera aquela coisa clandestina que era a felicidade. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.



Clarice Lispector ( A Descoberta do Mundo - pág 16)

26 julho, 2010

Sins.



Eu nunca faço escolhas, eu quero sempre tudo
Eu digo sempre sim
Eu não me confundo
Eu vou logo aceitando, eu peço sempre muito
Eu quero ver o fundo
Eu não vacilo
O tempo todo eu mudo, eu não duvido
Eu nunca pego restos
Eu não decido, eu quero...
Para estar em movimento,
invento alvos Eu finjo que estou perto
Eu só minto pra mim mesmo
Atrás de freqüências, potências, clarezas
Alcei novas retas, alcei novas rotas
Por onde pulsa a minha pressa
Eu não duvido
E sim eu digo
E sim eu quero
E sins, eu quero...


Sins - Composição: Adriana Calcanhoto

25 julho, 2010

Pensar é estar doente dos olhos



"O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...

Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...

O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia; tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar..."

Alberto Caeiro, em "O Guardador de Rebanhos", 8-3-1914
Alberto Caeiro é considerado o mestre de todos os heterônimos de Fernando Pessoa

24 julho, 2010

Lua Adversa

















"Tenho fases, como a lua
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases como a lua...)

No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu..."

Cecília Meireles


...

23 julho, 2010

Quanto vale um sim!!!!


Você consegue um bom emprego na hora que bem entender? Você descola um amor do dia pra noite? Se entrar num banco, sai de lá com um empréstimo sem burocracia? Se você respondeu sim para todas estas perguntas, parabéns. E fique atento para o horário de partida do seu disco voador, pois a qualquer momento você terá que voltar para seu planeta.

Entre nós, terrestres, o sim é uma resposta rara. Na maioria das vezes, NÃO há vagas, NÃO querem editar nossos poemas, NÃO temos fiador, a garota NÃO quer ouvir uns discos na sua casa, o garoto NÃO quer usar camisinha e o guarda de trânsito NÃO foi com sua cara e vai multá-lo, sim, senhor. NÃO está fácil pra ninguém.

Ao contrário do que possa parecer, esta não é uma visão pessimista da vida. As coisas são assim, dão certo e dão errado. Pessimismo é acreditar que ouvir um não seja uma barreira para realizar nossos planos. Tem gente que fica paralisado diante de um não. Nunca mais vai à luta. Já o otimista resmunga um pouco e em seguida respira fundo e segue em frente.

Quando eu tinha 17 anos, mandei uns versos para um concurso de poesia. Não ganhei nem menção honrosa. Daí entreguei meus versos para o Mario Quintana avaliar. Ele não respondeu. Neste meio tempo eu estava apaixonada por um cara que ignorava minha existência. Quando eu não estava pensando nele, fazia planos de morar sozinha, mas meu estágio não era remunerado. Aí quis viajar para a Europa, mas não consegui entrar num programa de intercâmbio. Surpreendentemente, não me passou pela cabeça a idéia de me atirar embaixo de um caminhão.

Hoje tenho nove livros publicados (cinco deles de poesia), sou casada com o homem que amo, tenho a profissão dos sonhos e viajo uma vez por ano, e tudo isso sem ganhar na megasena, sem cirurgia plástica, sem pistolão ou pacto com o demônio. O segredo: cada não que eu recebi na vida entrou por um ouvido e saiu pelo outro. Não os colecionei. Não foram sobrevalorizados. Esperei, sem pressa, a hora do sim.

O não é tão freqüente que chega a ser banal. O não é inútil, serve só para fragilizar nossa auto-estima. Já o sim é transformador. O sim muda a sua vida. SIM, aceito casar com você. SIM, você foi selecionado. SIM, vamos patrocinar sua peça. SIM, a Ana Paula Arosio deu o número do celular dela.

Quando não há o que detenha você, as coisas começam a acontecer, sim.

Martha Medeiros


21 julho, 2010

MEIO BONITA




Você sabe de quem eu estou falando. Ela chega, cumprimenta, tem um jeito engraçado de cruzar as pernas, usa aqueles sapatos. Quando tira os óculos você observa um tanto mais e tem a impressão de que a conhece de algum outro lugar, uma amiga de infância talvez, ou quem sabe a mocinha do filme antigo, aquela. Você não grava os nomes.
Se reparar bem, verá que os olhos são bonitos, de um formato que você nunca viu igual em outros rostos. Talvez não combinem com o nariz, que não é feio, porém foge um pouco do contexto proposto pelos olhos, e digamos que a boca, que não é feia, tornou-se apenas sem graça perto de um par de olhos muito bonitos e um nariz despropositado.
Em casos leves, você pensaria ‘ela é quase bonita’. Em casos com certa gravidade, você diria ‘ela tem um tipo bastante especial’. Se fosse feia, você não estaria aí pensando nela ou observando seu modo de cruzar as pernas. Ela é bonita, mas tem aquele jeito de rir, meio polêmico, e aquela maneira de andar, rápido demais, e quem sabe se não tivesse essa mania de esconder os próprios olhos atrás de tão estranhos óculos.
Você sabe muito bem de quem eu estou falando. Pensa que eu não sei? Acordou todos esses dias, sentiu-se solitário, frágil. Tropeçou diversas vezes em objetos variados, esqueceu alguma coisa muito importante e sentiu falta de alguém pra esquentar suas mãos. As garotas que você conhece são amigas demais ou pretendentes demais e você quer alguém distante, que te olhe de uma forma bem particular, te deixe confortável, contente, triste. De preferência alguém a quem você ainda não ame para poder falar abertamente sobre sua teoria de amor latente, amor que já habita algum determinado espaço e apenas não foi direcionado a algum alvo específico. Amor que já existe e você não encontra alguém com quem dividir.
Poderia ser essa menina, se ela não roesse as unhas. Se ela não tingisse o cabelo dessa cor. Se você tivesse coragem. E se não te assustasse tanto o fato de que ela se parece demais com o seu mundo, meio bonito. Meio antiquado. Meia estação.


...

19 julho, 2010

Cheiro de Amor

Cheiro de Amor (Maria Bethânia)
Composição: Duda/ Jota/ Paulo Sérgio Valle/ Ribeiro
De repente fico rindo à toa sem saber por que
E vem a vontade de sonhar de novo te encontrar
Foi tudo tão de repente, eu não consigo esquecer
E confesso tive medo, quase disse não
Mas o seu jeito de me olhar, a fala mansa meio rouca
Foi me deixando quase louca já não podia mais pensar
Eu me dei toda para você
De repente fico rindo à toa sem saber por que
E vem a vontade de sonhar de novo te encontrar
Foi tudo tão de repente, eu não consigo esquecer
E confesso tive medo, quase disse não
E meio louca de prazer lembro teu corpo no espelho
E vem o cheiro de amor, eu te sinto tão presente...
Volte logo meu amor

17 julho, 2010

Escolha

Apesar do medo
escolho a ousadia.
Ao conforto das algemas, prefiro
a dura liberdade.
Vôo com meu par de asas tortas,
sem o tédio da comprovação.

Opto pela loucura, como um grão
de realidade:
meu ímpeto explode o ponto,
arqueia a linha, traça contornos
para os romper.

Desculpem, mas devo dizer:
eu quero o delírio.

Lya Luft

16 julho, 2010

O correr da vida



"O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é CORAGEM."

João Guimarães Rosa



  • Na foto, uma saudade, uns amigos de São Paulo. Um domingo de Páscoa, um amanhecer na Praia da Joaquina (Floripa/SC). Melhor forma de renascer não há. Adoro essa foto, nela percebo claramente, como sou pequena, como somos pequenos diante da natureza e da imensidão do mar.




"Quero sair
O dia está tão lindo.
E eu quero ver o sol!
E cantar
com os meus amigos,
Até a noite chegar.
Sinto o vento
Soprar em meu rosto,
Algo quer me falar
Que a vida
é tão linda,
Não vale a pena chorar.
Já está na hora
Já é o dia,
Tenho que ir pro mar,
Que me traz a paz,
A alegria, me equilibra
E me faz pensar."

Floripa - Chimarruts
Composição: Sander Fróis/rafael Machado