19 dezembro, 2010

Eu escolhi a felicidade

Por Lya Luft

No dia em que completava 102 anos, sentada à mesa de sua cozinha, ajudando filhas e empregadas a preparar o almoço, uma dama perfeitamente lúcida fez esse comentário, e acrescentou: "Eu escolhi a felicidade."

Entrevistada, explicou que não se tratava de não ter problemas, mas de "não ter pena de si mesma, não desconfiar de tudo, e não alimentar demais a raiva, porque ela rói o coração". Quase no final de uma trajetória excepcionalmente longa, essa velha dama não se lamentava pelo que havia perdido, os amados motos, a saúde fragilizada, não poder mais caminhar sozinha, nem dançar, mas dava seu recado: a vida, em boa parte, são as nossas decisões. E se não podemos mudar os fatos, podemos administrar nosso jeito de lidar com eles.

Obviamente boa parte disso vem de nossas disposições inatas, se fomos um daqueles bebês solares ou irritadiços, se nossa meninice foi mais ou menos favorável, se fomos suficientemtente amados e nossa alma nos permitiu - ou não - perceber isso.

Mas vejo um melhor projeto de vida do que esse: escolher o lado do sol, em vez de acompanhar a procissão dos queixosos. Querer ser o cuidador (sem vitimização) e não o perseguidor, não humilhar o parceiro ou ironizar o filho que não vai esquecer isso nunca mais.

A vida é uma longa construção: em geral a enxergamos como deterioração. Não conseguimos apreciar o outro lado, que é acúmulo, experiência, serenidade, mínima sabedoria, mais tempo, quem sabe mais bondade. Construção de emoções positivas, com porões de tristezas e um sótão de decepções, mas a sala e os quartos arejados, com portas que podemos abrir para que se revele o que ainda virá em seguida e vai se desdobrar.

Isso é o que "a gente decide".

Fatalidades à parte, somos senhores de algumas cenas do espetáculo chamado vida, podemos modificar algumas falas, interferir no roteiro, escolher o personagem que somos e com quem desejamos contracenar.

Tudo isso, até certo ponto, pois as circunstâncias, a família de origem, as opções posteriores, até o lugar onde vivemos têm seu peso, e não é pequeno.

Entre desgraça e audácia, andamos nesse fino arame das possibilidades que nos cabem, onde fomos colocados sem nenhuma preparação ao nascer.

As engrenagens do destino não seguem a nossa lógica. Com tantas ilusões infantis, que arrastamos maturidade afora, não é fácil entender que não é preciso escalar o Himalaia intelectual ou social, ser uma pessoa famosa, um homem poderoso ou uma mulher deslumbrante para que a vida tenha sentido e se atinja um grau de harmonia, que chamo de felicidade. Encontrar o contentamento não tem a ver com carteiras, cartões, medidas e pele lisa, liderança óbvia ou alta competitividade, pois a verdadeira importância é outra: é a de um ser humano atuante, a começar por si mesmo e seu grupo mais próximo, a família, depois o trablaho, a comunicade, e, sem grandes gestos tresloucados, o país e, sim, o mundo.

Não há receita nem facilitador, mas a esperança de que, no desenho às vezes absurdo da existência, haja tramas de afeto, rasgos de criatividade, força de ações - isso inclui cuidado com a natureza e eliminação da pobreza mais brutal - que nos justifiquem enquanto seres humanos.

Tenho o otimismo, tenho - talvez - a ingenuidade de acreditar que tudo faz algum sentido, e que n'so precisamos descobrir ou esboça-lo. O que nos propomos, o que extraimos do fundo de nós e de nossas necessidades para nos salvar da mediocridade ou do desespero, nem por isso será menos estimulante, nem por isso será menos real.

Mas para além do que diz a nossa cultura, exige a nossa sociedade e inventam nossas neuroses, o precioso tempo da vida fica a cargo de cada um de nós, até aquele tão decantado último suspiro.

Podemos por exemplo tirar o nariz de palhaço e construir algo real com nossas escolhas. A alienação é uma postura criminosa quando se trata de assuntos graves que envolvem ética, justiça, direitos, dignidade - que andam de mão dadas

(...)

Mas não é fácil mudar conceitos e comportamentos se isso ameaça nos tornar diferente, por menor que seja essa diferença em relação ao nosso grupo. Queremos ser aceitos pela maioria, reconhecidos, quem sabe admirados, como em crianças queríamos ser o preferido da mãe ou do pai. Em muitas coisas seremos sempre crianças insatisfeitas em cujo inconsciente o lídar da turma, o chfe do setor, o político ou o esportista assumem a figura paterna, que na nossa fantasia tem sempre razão, decide por nós, talvez até seja complacente.

Nadar contra essa correnteza da opinião alheia e a atitude da maioria exige discernimento: o que fazer, o que escolher, o que mudar, ainda que seja apenas meu jeito de tratar os outros, ou o valor que me atribuo? Exige desejo e determinação.

Mudar, por pouco que seja, faz parte da nossa pequena guerra individual e cotidiana. Superar coisas que nem queremos, projetos que sabemos falsos, atitudes aplaudidas, porém ridículas, promessas mentirosas, turmas que não nos dizem nada, aventuras sem graça Será mesmo no mais bana, e em qualquer altura da vida, o início de um bom aprendizado: continuar crescendo.

Eventualmente suspiramos pelo tempo em que tínhamos menos possibilidades, portanto menos conflitos, e os outros decidiam tudo. Mas a gente não participava na construção de si mesmo, abrindo portas e mobiliando quartos. Outros decidiam, outros falava; de sacrifícioo, deveres, compromissos, ou do lema preferido destes tempos: a animação, a agitação, pensar é um tédio, vamos correr, vamos ao shopping que sempre é uma forma de salvação.

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