22 agosto, 2012

Bicho-do-mato.


Foi alguma coisa que eu fiz? Que eu não fiz? Que você nem queria mesmo que eu fizesse, mas seria legal demonstrar interesse em fazer? “Foi uma coisa que você disse.” 

Já sei, alguma das minhas piadas estúpidas. Olha, não vou me desculpar, eu sou assim, se eu tiver que desdizer qualquer bobagem, não terei mais tempo para outra coisa. Não leva sério esse papinho freudiano de que as brincadeiras têm um fundo de verdade.


“Você disse que estava gostando de mim. Foi isso.”

Ah. Bom, isso eu falei sério. Há um penhasco de verdade aí. Isso chateou você?

“Digamos que foi uma frase mal colocada. Despropositada e fora de lugar.”

Bom, vou ter que me desculpar por dizer o que eu estou sentindo?

“Eu sei onde você quer chegar. Olha, vou ser honesta contigo, algo me diz que você merece. Eu não sou interessante. Você entende? Sei como é, só porque eu sou bonitinha, eloquente e meio exótica, com seus olhos você enxerga uma garota inteligente, divertida, culta, impressionante, talvez boa de cama. Eu não sou nenhuma dessas coisas. Eu não tenho graça nenhuma.”

Bom, isso quem decide sou eu, não é mesmo?

“Falo sério. Talvez eu até mereça essa sua atenção momentânea, mas a longo prazo sou uma garota que não funciona direito. É como se eu fosse uma vitrola antiga, com a agulha defeituosa. Se você parar para prestar mais atenção em mim, vai se dar conta que eu fico roçando no vinil e atrapalhando a música, provocando aqueles ruídos que dão agonia nos dentes. E sabe o que é pior? Eu não tenho conserto, não há peças de reposição no mercado, sou uma causa perdida. Por que você não abraça uma árvore? Vai dar na mesma.”

Você só anda com problemas de autoestima. Eu acho você bonita e atraente. Você se acha pouco, e por mim tudo bem, eu não preciso de muita coisa para ficar feliz.

“Não. Gostar de mim mesma não é autoestima, é humor negro. Sou realista, não passo de uma boboca vazia e sem glamour. Meu corpo faz umas promessas que meu cérebro não pode cumprir. Eu sou burra, gosto de novela e comédias românticas, não leio Sartre e esses troços.”

Admiro você por não ler livros de filosofia. Quem entende aquele papo? Eu acho que as pessoas dizem que leem Sartre só para parecerem letradas e cerebrais. Esse tipo de gente não me encanta. E você não é burra, é apenas... pop. Como os Beatles.

“Não é só isso. Aí do outro lado você deve estar me imaginando de calcinha e camisetão da Janis Joplin até as coxas, fazendo as unhas do meu pé, no sofá, cheia de esmaltes coloridos espalhados em volta, com aquele separador de dedinhos e tudo. Você deve achar que eu fico bebendo Carménère e escutando Ella Fitzgerald pela casa, na escuridão. Parte da sua admiração são essas visões sexies que você tem. Quer saber, eu estava agora mesmo desentupindo o ralo do meu banheiro, e logo antes liguei para minha mãe perguntando daquela receita de família que tira o chulé. Sabe qual foi meu jantar? Pão, café-com-leite e banana. E agora estou sem as lentes de contato, usando uns óculos que tapam metade da minha cara. E aí, o que você acha, ficou com tesão?”

Não muito. Você só está tentando me afastar. Não está conseguindo. Pelo contrário. É isso que eu gosto em você, seu realismo, sua espontaneidade, sua falta de modos. É isso que eu acho bonito numa pessoa, você vive sua vida, aceita suas limitações, não dá muita bola para o que os outros vão achar. Às vezes eu acho as pessoas tão igualmente diferentes, sempre pendurando idiossincrasias no pescoço e fazendo um esforço tremendo para parecer legal. Você é você. Estou certo que existem almas formidáveis por toda a cidade, mas se eu fui gostar logo de ti, isso quer dizer alguma coisa.

“Eu fico aqui pensando, que problema mental será que você tem pra gostar tanto assim de mim. Inábil, patética, dentes tortos, queixuda, e de cabelos oleosos. O próprio bicho-do-mato. Na escola, eu tinha uns 14, fizemos uma viagem de final de ano para o Chile, e eu gostava de um menino. Perguntei se ele ficaria comigo e ele disse que sim, claro, se o nosso avião fizesse um pouso forçado na Cordilheira dos Andes ou coisa assim. Sempre que um cara diz que gosta de mim, acho que ele está zoando comigo. Sério, a última pessoa que ficou arrebatada por mim foi o dono do circo Vostok, ele disse que tinha uma atração para mim, se fosse embora da cidade com o pessoal. Eu não tenho sal nem sex appeal, eu não sou legal, às vezes coloco um vestido e me revisto umas três vezes por que a roupa parece sempre do avesso. Um dia eu saí na rua depois do banho, fiz uma careta contra o vento e fiquei assim.”

(Risos) Abobada. Tudo bem, Você não é nenhuma Zooey Deschanel, mas você não é feia, só anda se sentindo desse jeito porque não está sendo amada por alguém, no momento. Mas isso pode mudar. Sabe, você não é do tipo que ficaria nem cinco minutos no telefone com qualquer pessoa sem o mínimo de interesse. Se está deixando rolar essa conversa, é porque gosta de mim, ou então já teria desligado e me mandado às favas. Você só está complicando as coisas porque está preocupada que isso possa ser uma coisa importante. Você não quer se comprometer.

“É, eu não quero me comprometer. Eu agradeço sua atenção, mas estou dando todas as chances pra você desistir. Aceite minha oferta e pense bem, caia fora, garoto. Ou eu não me responsabilizo.”

Não existe motivo para pânico. Você age como se eu quisesse descarregar um caminhão de mudança na sua sala de estar. Por enquanto eu só quero te chamar pra sair.


Gabito Nunes.

Nenhum comentário:

Postar um comentário