20 maio, 2011

Monólogo de uma mulher de mercado

"Ele não disse nada para mim. Nada. Ele não disse que o sol brilhava só para mim, nem que eu era sua flor da montanha, ele não disse nada para mim naquela noite ali num cantão escuro de São Paulo, ali no carro dele, um Audi, sim, um Audi onde ele me dava um amasso, mas eu não queria ainda amassos, eu queria amor, sim, e ele não me chamou de flor da montanha, ele me chamou de avião, ‘você é um avião!’, e que eu era uma gatona, uma tigresa, e ele ia tentando abrir minha jeans Diesel, mas ainda bem que era muito justa e eu não queria ainda nada, e eu chamei ele de Ferrari, ‘Calma aí, você pensa que é uma Ferrari?’, há há há ele riu e eu ri, sim, também para melhorar o clima, e aí eu fazia força para não pensar no passado, no tempo em que eu lia Simone de Beauvoir e Joyce, sim, o lindo monólogo final de Molly Bloom, cheio de sins, sins, sim, eu fazia esforço para não olhá-lo porque eu não o amava e talvez nunca amaria, e eu fazia força para não ver seu rosto, seu jeito bruto apressado dizendo ‘segura aqui gatona’, e eu: não, calma aí, eu que sempre sonhei com um homem doce e profundo que ‘someday will come along’, que me desse um longo beijo e que eu perdesse o ar, e então ele diria que o sol nasceu para mim e eu claro me apaixonaria na hora, sim, pois estaria provado que ele sabia tocar uma mulher, mas não, ele me bolinava e seu celular tocava com uma musiquinha de carrossel ti ri ri ti ri ri e ele não parava de meter a mão entre minhas pernas como se eu fosse uma continuidade do celular, do carro, como se eu fosse uma peça ali do conjunto, da engrenagem do carrão, e eu queria até me emocionar, queria querer, esperava ver o sol raiar e me apaixonar, mas o sol não aparecia atrás da poluição da cidade, dos viadutos punks, eu queria ver o sol ou a lua para me estimular, para que eu pudesse amá-lo, sim, mesmo sendo ele diferente de meus sonhos, mesmo ele com sua camisa de ‘voil’ de bolinhas brancas, mesmo ele com bigode e uma barbinha aparada, mesmo com sua barriga de chope, sim, mesmo assim eu poderia até me apaixonar, gamar mesmo, sim, pois nós mulheres somos frágeis, mas ele não ajudava, falando alto, me apertando, só pensando na técnica de me convencer a dar para ele, e eu fingia naturalidade, sim, aprendi isso no mercado financeiro: sorrir sempre, pois ‘bode’ não é comercial, sim, eu pensava em meu emprego, e fui conseguindo esquecer minha alma romântica e já falava calculadamente, trocando meu ódio por silêncios suaves, minha coragem por risos obedientes, meus desejos por segurança, minha independência juvenil e esperançosa pela necessidade de entrar no mercado, sim, no mercado, sim, onde tudo se passa e eu me lembrava de tantas amigas perdidas na noite, sem lugar no mundo real e, sim, eu vi que já era uma mulher de mercado, e onde andará Leila Diniz, em que deserto da Índia ela sumiu?; onde andará Sílvia Plath, em que fundo poço, e onde estarão as poetisas mortas, em que hiatos se soltaram?; e o que ele queria de mim podia ser dado por qualquer putinha, mas não; ele queria me dobrar, me obrigar a dizer sim sim, ele queria minha fraqueza, meu amor vencido, ele me queria ali, a seu serviço, ele queria provar o fim da liberdade, do feminismo, e eu sabia sim, sabia do seu escroto uso de poder, mas tinha medo também de nada ter, tinha medo também da solidão fria, ao menos ele era um homem me querendo, melhor que o nada no viaduto, e aí eu tentava desesperadamente em minha fantasia descobrir beleza até na boçalidade, eu pensava: ele é apenas um cafajeste brasileiro, tão típico, um cafajeste poético, enquanto ele ria e tocava um CD de pagode ali no carro e eu pensava em outro homem na minha imaginação, ‘the man I love’, uma mistura sei lá, de Brad Pitt com Gianecchini para me conformar com ele, assim como me acostumei com o fim das esperanças, me acostumar com a armadilha de liberdade em que todas nós caímos, sim, agora que estamos sem futuro, sem bandeiras, entre o emprego mal pago, a cozinha ou a prostituição, não como a honesta ‘micheteira’, a doce ‘babadeira’ legal, mas a prostituta da submissão, da mansa aceitação do ritual diário do marketing, do puxa-saquismo no emprego, do riso de falsa alegria diante de piadas sacanas no escritório, sim sim, eu sei que está aparecendo meu ‘cofrinho’, ali atrás na minha calça justa, há, há, há, vocês machões são fogo, eu sorria, parecendo deliciada, pensando: tenho de ser gostosa e alegre, como ensinam todas as capas de revista, com bundas bundas bundas, e tenho de fechar os olhos e imaginar que estamos em frente ao mar azul pavão no fim de tarde, no crepúsculo glorioso com os roseirais e gerânios surgindo atrás de seu carrão prateado, grandes flores no para-brisa e, sim, eu fechava os ouvidos para não ouvir o seu riso arfante e o pagode, bem que poderia virar um Cole Porter ou algo assim, pois eu tinha de imaginar que seus músculos de malhado gordo eram para me proteger e não para talvez até me bater se eu disser não, não, sim, sim, tinha de ouvir a voz de meu herói imaginário dizendo que eu sou a flor da montanha, e tinha de achar que quem me beijava não era ele, mas era um outro que não existia e, sim, aos poucos fui ficando mais conformada, talvez mais fria, talvez até mais contemporânea e sim, eu pensava: sim, sou uma mulher que está dentro do mercado, sim, e aos poucos comecei a achar uma certa graça perversa nele e ele me perguntou se eu diria sim, se eu faria sim, e ele me chamou de novo de avião e de minha gostosona, mas eu ouvia que o sol nasceria só para mim, e ele falou olha o minhocão e olhei e não era o viaduto e, sim, ele empurrou minha cabeça suavemente, sem dúvida, ele foi suave, empurrou minha cabeça suavemente para baixo, para seu colo e eu pensei que, como diria Milton Friedman, nada existe fora do mercado e eu disse sim, sim, eu beijei sua barriga e desci aos poucos e sim, eu disse sim... sim". 

Arnaldo Jabor

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